EXAME DE OBJETO DELITO

 Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva

 Relutante, ela entra na Delegacia de Mulheres.

- "Pois não." diz a detetive de plantão.

- "Eu queria uma informação."

- "Pode falar."

- "Eu queria saber onde é que eu posso levar a televisão que meu marido quebrou pra fazer um exame de objeto delito."

- "A senhora está brincando comigo."

- "Não, não. Estou falando sério."

- "Mas. minha senhora..."

- "Primeiro foi meu radinho de pilha que eu levava pra cozinha. Um dia eu disse a ele que não aceitava mais que ele me tratasse mal na frente dos parentes dele. Ele jogou  meu radinho na rua e o ônibus passou em cima dele. Só sobrou a capinha de couro cor-de-rosa. Tinha sido presente do dia dos namorados. Antes de casar, né? Porque agora, ele não me dá presentes mais. Diz que é invenção de judeu, que presente não tinha que ter data marcada pra dar, que a gente dá é na hora que está com vontade. Dez anos de casamento! O único presente que ele me deu foi há uns cinco anos. Um aparelho de som. Mas só ele sabe mexer na aparelhagem. Eu não entendo aqueles botões todos e ele disse que é melhor eu não mexer pra não estragar."

- "Minha senhora, tem muita gente lá fora esperando...

- "O som, ele quebrou no dia que eu reclamei que eu vivia socada em casa, que ele saía todas as sexta-feiras pra tomar chopinho, e que eu só ia a aniversário de criança em casa de parentes e, mesmo assim, quase sempre sozinha porque ele estava sempre cansado."

- "Ele alguma vez bateu na senhora?"

- "NÃO, nunca! Só um empurrão e um tapinha de leve. Toda vez que eu falo o que ele não quer escutar, ele ameaça me bater. Mas eu não tenho medo não. Eu queria que ele me batesse pra marcar, pra eu poder mostrar pra todo mundo. Pra senhora, principalmente. Mas ele só aponta pra mim com a mão fechada, como se fosse dar um soco, e diz "ai que vontade de quebrar você todinha. Cala essa boca que eu ainda te arrebento. Um dia eu não agüento e te estraçalho." Mas bater nunca. Ele já quebrou o telefone. Ah! o sem fio também, o rádio relógio..."

- "Mas então o que a senhora veio fazer aqui?"

- "Pedir informação pra fazer exame da minha televisão."

- "Eu acho que a senhora veio ao lugar errado."

- "Mas não é aqui que protegem as mulheres de seus maridos violentos?"

- "E televisão é mulher?"

- "Não é, mas fala. E ele tem ódio quando eu começo a falar que eu não tenho obrigação de catar as meias que ele joga no chão; que eu não tenho obrigação de ir ao banco e enfrentar fila pra ele; que eu não tenho obrigação de guardar suas roupas, arrumar suas gavetas, limpar seus sapatos, esvaziar seu cinzeiro e guardar as garrafas que ele esvazia. O dia que ele quebrou o toca-fita, eu tinha falado que minha boca ninguém fechava. Ele tem mania de mandar eu calar a boca, mas eu não calo. Se eu não posso gritar com ele, ele também não pode gritar comigo. A senhora não acha?"

- "Até agora, eu não consegui entender o que eu posso fazer pela senhora."

- "A senhora não entendeu ainda? Eu corro risco de vida. A televisão era a única coisa que ainda falava lá em casa. Agora só eu falo... porque as criança só falam o que ele quer escutar. A televisão não, ela fala um monte de coisas que ele não gosta de ouvir. Fala, por exemplo, de orgasmo feminino que ele acha que não existe, fala de diálogo entre os pais e os filhos, de alcoolismo... Fala sobre tudo que o incomoda. Eu também o incomodo. Eu sei. Eu sou a próxima vítima. Eu sou o único objeto falante que sobrou, entende?"

- "Mas televisão quebrada não é caso pra Delegacia de Mulher."

- "A senhora não entende? Por favor! Ele quebrou a televisão. Eu sou a televisão. Eu não existo sem a televisão. Quando eu ligo a televisão, eu tenho o corpo bonito, a sexualidade desreprimida, roupas lindas, amantes afetuosos... Eu sou revolucionária, contestadora, intelectual, política, executiva, repórter, artista, heroína, independente, segura, dona de mim... Eu vejo o noticiário e finjo que faço parte desta cidade, deste estado, deste país, deste mundo. Mas agora, eu não sou nada. Eu sou só a mulher do meu marido. E que eu nem sei se é só meu ou se divido com outras."

- "Mas minha senhora. Não é crime quebrar um objeto. Não se faz exame de corpo delito em objetos, só em pessoas."

- "E se ele me quebrasse? Eu poderia fazer exame de corpo delito?"

- "Claro. E nós chamaríamos seu marido aqui e abriríamos um inquérito. Mas a senhora mesma disse que ele não te agride."

- "Mas então eu não estou entendendo mais nada. A televisão lá em casa sempre foi mais gente do que eu. Eu sim é que fui e sou objeto. Ele não olha pra mim, ele olha pra televisão. Ele não conversa comigo, mas com a televisão ele conversa. Quando aparece um político ele diz, "demagogo, sem vergonha". Se aparece uma mulher bonita, ele diz, "isso é que é mulher!" Se aparece uma mulher inteligente no programa da Hebe falando do machismo do homem brasileiro, ele logo diz, "essa aí devia estar choferando um fogão ou um tanque de roupa." Mas, se eu tento conversar, ele finge de surdo ou então diz, sem tirar os olhos da televisão, "pera aí que eu quero ouvir", e aponta pra televisão. Se eu começo a conversar com as crianças ou com alguém no telefone, ele aumenta o volume da televisão. A senhora não acha que a televisão é muito mais gente do que eu?"

- "Olha minha senhora, a única coisa que eu posso te dizer é que não podemos fazer nada pra te ajudar. Não há leis protegendo objetos da agressão de seus donos."

- "Mas quebrar coisas que falam não é crime?"

- "Não."

- "Mas ele pode me quebrar."

- "A senhora vai me desculpar, mas não podemos trabalhar com hipóteses. Se em quinze anos de casada, ele nunca agrediu a senhora, não será agora que ele vai fazê-lo, não é?"

- "Mas isso também é uma hipótese."

- "A próxima, por favor."

              Vencida pelo argumento da autoridade, a mulher foi para casa. O marido que havia avisado que não viria para o jantar chegara primeiro e a olhava desconfiado. A televisão continuava calada. Ela correu para a cozinha e foi ajudar a empregada no preparo do jantar. Da sala o marido, em silêncio, furava-lhe com os olhos. Quando ela colocou a sopa fumegante na mesa, ele virou a sopeira em cima dela sem dizer uma palavra. Ela soltou um grito de dor logo abafado pelo soco que lhe rachava os dentes e outro que lhe sangrava o nariz. Assim que tomou um fôlego, ela gritou que iria denunciá-lo na Delegacia de Mulheres. Ele pegou o revólver e deu-lhe um tiro na boca. A morte arregalou-lhe os olhos que se fixaram no aparelho de televisão quebrado. As crianças, que estavam na casa do vizinho, entraram correndo e encontraram o pai, atônito, olhando para o retrato de casamento em cima do aparelho de televisão. A filha mais nova abraçou o pai e disse, "não chora papai, ela está caladinha, do jeitinho que o senhor gosta."