Sinais de Variáveis Afetivas e de Autonomia em Narrativas de Aprendizagem de Inglês como Língua Estrangeira

 

Karine Patrícia Dias Cardoso[1]

Diógenes Cândido de Lima[2]

 

Resumo

Assumindo que a questão da afetividade pode influenciar positiva ou negativamente a aquisição de língua estrangeira e considerando a autonomia um outro fator que tem poder de interferência nesse processo, o presente trabalho objetiva identificar sinais de variáveis afetivas e de comportamento autônomo em narrativas de aprendizagem da Língua Inglesa – escritas, no ano de 2004, por graduandos e graduados do Curso de Letras com Inglês da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. A partir de uma análise qualitativa, verifica-se que motivação e desmotivação, bem como atitudes positivas e negativas representam as variáveis de afetividade mais freqüentes nos registros de memória daqueles aprendizes, as quais, por sua vez, mantêm estreita conexão com os elementos, a saber: professor, metodologia, conteúdo e materiais empregados no ensino da língua estrangeira. No que diz respeito ao fenômeno da autonomia, a partir das narrativas de aprendizagem em questão, constata-se que este varia de aprendiz para aprendiz; acontece, essencialmente, fora do ambiente da sala de aula; manifesta-se num menor grau de independência e controle sobre o processo de aprendizagem; e influencia-se por fatores internos (como desejo de aprender, características afetivas do aprendiz) e por fatores externos (como condição socioconômica). 

Palavras-Chave: afetividade, autonomia, narrativas, Língua Estrangeira.

Abstract

This paper has the objective of identifying signs of affective variables and of autonomous behavior in learning narratives of English as a Foreign Language, written in 2004 by graduates and undergraduates of the Course of Letters, with a concentration in English, from the State University of Southwest Bahia. Starting with a qualitative analysis, it is verified that motivation and the lack of it, as well as positive and negative attitudes represent the most frequent occurrence of affectivity in the minds of these learners. These affectivities maintain narrow connection with elements, such as: teacher, methodology, content and materials used in the teaching of a foreign language. In relation to autonomy, it is verified that it varies from apprentice to apprentice; it happens, essentially, out of the classroom; it shows itself in a smaller degree of independence on the learning process; and it is influenced by internal factors (such as desire to learn, the apprentice's affective characteristics) and by external factors (such as socioeconomic condition).   

Key Words: affectivity, autonomy, narratives, Foreign Language.

Introdução

A abordagem comunicativa – que para alguns, a exemplo de Orellana (1997), surgiu da insatisfação com métodos de ensino de língua estrangeira bastante utilizados antes das décadas de 70 e 80 do século XX, tais como: o gramática e tradução, o audiolingual, – acabou promovendo mudanças significativas quer seja no tratamento dado à língua, quer seja na redefinição dos papéis de aluno e de professor de língua estrangeira.

A partir dessa nova abordagem, deixa-se de dar importância à forma, para se pensar na função da língua. Não mais se espera que o indivíduo adquira uma língua estrangeira (LE) ou segunda língua (L2) por meio da memorização de regras gramaticais; ao contrário, a gramática é vista como algo secundário, então, busca-se o resultado pela exposição e uso real da língua, pelo ato de se comunicar. Ademais, a abordagem comunicativa mantém o foco no aluno; assim, o professor deixa de ser encarado como o protagonista no processo de ensino-aprendizagem e passa a desempenhar o papel de orientador, facilitador, co-participante  nesse contexto.

Com a aprendizagem centrada no aluno, a este é dada a oportunidade de expressar suas idéias, emoções e opiniões. Ao mesmo tempo, conforme sugere Paiva (2006), com o professor deixando de desempenhar o papel de controlador da aprendizagem, é reconhecida e ensejada a capacidade do comportamento autônomo do aprendiz no processo de aquisição da língua-alvo. Assim sendo, é possível inferir daí que, nesse processo, não somente aspectos cognitivos, mas também fatores afetivos se fazem presentes.

Posto isso, partindo do pressuposto de que a aquisição de língua estrangeira pode ser influenciada pelo aspecto da afetividade e considerando a autonomia um outro fator que tem poder de interferência nesse processo, o presente trabalho se apresenta com o intuito de detectar, a partir de uma análise qualitativa, sinais de variáveis afetivas e de comportamento autônomo em narrativas de aprendizagem da Língua Inglesa.

Narrativas de Aprendizagem

Para Cunha (1997), o processo de investigação qualitativa, que se serve de narrativas enquanto instrumental educativo, pode alcançar importantes resultados tanto no âmbito da pesquisa, como no campo do ensino. A autora sugere que na narrativa não existem somente as idéias do indivíduo para o relato, seja este escrito ou oral, mas, nesse instrumento, também está presente uma auto-análise, que permite ao sujeito construir novas bases para reflexão sobre sua própria prática.

Mantendo o foco na aquisição de LE/L2, percebe-se a importância das narrativas como recurso de investigação daquele processo na medida em que, como observa Paiva (2006a), elas favorecem a compreensão de significados em contextos de aprendizagem sob o ângulo de visão dos próprios aprendizes, uma vez que são eles os relatores de como aprendem ou aprenderam a língua em questão. 

Nesse sentido, a análise qualitativa deste trabalho se baseia em narrativas de aprendizagem da língua inglesa escritas, no ano de 2004, por graduandos e graduados do Curso de Letras com Inglês da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). As narrativas, utilizadas nessa análise, integram o corpus que está sendo construído pelo projeto Aprendendo com Memórias de Falantes e Aprendizes de Línguas Estrangeiras (AMFALE)[3], coordenado pela Profa. Dra. Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG).

Faz-se mister salientar que,  ao longo da análise deste trabalho, os conceitos de língua estrangeira (LE) e segunda língua (L2) recebem o mesmo tratamento e os termos aprendizagem (learning) e aquisição (acquisition) não sofrem distinção. A análise é conduzida sob o enfoque da abordagem comunicativa; embora admitindo o entendimento de que nenhum modelo teórico, por si só, seja capaz de explicar todos os padrões que a aprendizagem de uma língua está sujeita. A preferência àquela abordagem se justifica por acreditar que o ensino de língua estrangeira deve estar centrado no aluno e deve manter sua ênfase na comunicação.

O Aspecto da Afetividade

Por desenvolver idéias compatíveis aos princípios da abordagem comunicativa, inúmeros estudos do processo de aquisição de LE/L2 têm se baseado nos trabalhos do teórico Stephen Krashen. De acordo com Trentin (2001), o autor formula a teoria sobre aquisição de segunda língua a partir do levantamento de cinco hipóteses:

  1. hipótese de distinção entre aquisição e aprendizagem de uma língua – Krashen estabelece que aquisição (acquisition) e aprendizagem (learning) se tratam de dois fenômenos diferentes. O primeiro consiste em um processo subconsciente, parecido com ou tal qual o modo como acontece com as crianças no desenvolvimento da primeira língua, sem a preocupação com regras gramaticais; aquisição significa saber usar a língua. O segundo demanda um esforço consciente do indivíduo, consiste em saber regras, ter consciência delas, saber falar sobre elas; sendo assim, aprendizagem significa saber sobre a língua.
  2. hipótese da ordem natural – o teórico propõe que algumas estruturas gramaticais são adquiridas mais cedo ou mais tardiamente do que outras; embora ressalte que a ordem de aquisição de uma LE/L2 seja diferente da ordem de aquisição de uma língua materna.
  3. hipótese do monitor – segundo Krashen, esta hipótese se associa à idéia da aprendizagem, pois se refere ao uso consciente que o indivíduo faz das regras gramaticais, no qual três condições essenciais são necessárias: tempo, foco na forma (e não na mensagem) e conhecimento das regras.
  4. hipótese do input  – para o estudioso, o indivíduo se encontra num estágio lingüístico inicial (i), a partir do qual exposto ao insumo ou input compreensível, de modo inconsciente, internaliza-o e passa para um estágio lingüístico atual mais avançado (i + 1).  Assim, esta hipótese se associa à idéia da aquisição, uma vez que quanto maior e melhor a exposição ao input compreensível, mais natural e rapidamente a L2 poderá ser adquirida.
  5. hipótese do filtro afetivo – conforme o lingüista, ainda que haja exposição suficiente e compreensível de input, determinadas variáveis afetivas do indivíduo podem funcionar  como uma espécie de filtro ou barreira que facilita ou bloqueia a aquisição da língua.  A ausência de motivação, a falta de confiança, a presença de alta ansiedade elevam o nível do filtro afetivo e impedem que o input compreensível aconteça; enquanto que o indivíduo motivado, com maior autoconfiança, está mais susceptível ao recebimento de input, conseqüentemente, mais propenso à aquisição da língua.

Apesar de a base empírica de Krashen receber críticas – a exemplo de Paiva (1994), que considera que o autor não leva em conta a importância da produção, output compreensível, e, a exemplo de Bezerra (2003) que salienta que o contexto social e sua influência não são considerados no processo de aquisição da língua – é visível a importância desse modelo teórico ao considerar, por exemplo, que variáveis afetivas podem influenciar positiva ou negativamente a aquisição de língua estrangeira.

Reportando-se a Terrell (1991), o modelo teórico de Krashen estabelece que a língua é adquirida quando os aprendizes processam o input num baixo contexto de ansiedade. Seguindo essa linha de raciocínio, as condições causativas para a aquisição de uma língua são: primeiramente, a centralização do foco não na forma (gramática), mas na função da língua (produção de significados) e, segundo, a inexistência de variáveis afetivas bloqueadoras nesse processo.

Autonomia e o Processo de Aquisição de LE/L2

Considerando a autonomia como um dos fatores que também interferem no processo de aquisição de LE/L2, percebe-se que a literatura traz diferentes conceitos para o termo. Benson (2001 apud BRAGA, 2004, p. 47-9) observa que a autonomia passa a ser conceituada na área de aprendizagem de línguas, em 1971, a partir dos programas desenvolvidos pelo Centre de Recherches et d´Applications en Langues (CRAPEL) na Universidade de Nancy, situada na França. Tais programas do CRAPEL, na visão do autor, tratavam a autonomia como a capacidade do aprendiz em autodirecionar sua própria aprendizagem.

De acordo com Braga (2004, p. 48-49), o termo autonomia esteve associado ao conceito de individualização e dessa associação, presente nas décadas de 70 e 80, originaram-se críticas, uma vez que o entendimento de autonomia se vinculou à idéia de trabalho isolado; posicionamento este, revisto nos últimos anos, já que o termo passou a incorporar no seu conceito aspectos como colaboração e interdependência.  

Na visão de Holec (1981 apud BRAGA 2004, p. 50), autonomia é entendida como a capacidade do aprendiz em controlar a sua própria aprendizagem, o que implica decisões tomadas nas importantes etapas desse processo, desde o estabelecimento de objetivos, passando pela definição do conteúdo, métodos, técnicas, até passar pelo monitoramento (ritmo, tempo, lugar) e, finalmente, pela avaliação do que se aprendeu. Parece que Little (1991 apud PAIVA, 2006, p. 82) compartilha dessa idéia quando considera que “a autonomia é a capacidade de planejar, monitorar e avaliar as atividades de aprendizagem, e, necessariamente abrange tanto o conteúdo quanto o processo de aprendizagem”. Dickinson  propõe que “um aprendiz autônomo é aquele que é totalmente responsável para tomar decisões que dizem respeito à sua aprendizagem e para implementá-las”. (1987 apud PAIVA, 2006, p. 82)

Para Paiva (2006, p.82), tais definições não são totalmente satisfatórias, mas a autora entende que os dois últimos conceitos poderiam se encaixar num grau máximo de autonomia, no qual o indivíduo estaria apto a decidir sobre o que aprender, como e quando, independentemente do contexto educacional formal.

Benson (2001 apud BRAGA 2004, p. 53-55) observa que, apesar das várias definições comumente empregadas, o conceito de autonomia deve abranger o sentido político, uma vez que não se deve excluir do ensino-aprendizagem de línguas o conteúdo político que elas carregam, a exemplo de atividades nas quais um grupo de aprendizes pode discutir o porquê de se estudar determinada língua e avaliar tais razões convencionais do ponto de vista de suas experiências e objetivos.

Segundo Littlewood, desejo e habilidade são dois componentes essenciais num comportamento autônomo, o primeiro composto por motivação e confiança e o segundo, resultado de conhecimento e habilidades. (1996 apud PAIVA, 2006, p. 84)

Dickinson (1987 apud PAIVA 2006, p.81) considera que os diferentes graus de autonomia podem ser afetados por fatores internos ou externos, tais como: decisão de aprender; método de aprendizagem; ritmo; quando/onde; materiais; monitoramento; avaliação interna e externa. Paiva (2006, p. 81) acrescenta que outros fatores também podem repercutir de modo favorável ou negativamente ao fenômeno: características do aprendiz, professores, tecnologia, legislação educacional e aspectos culturais, econômicos e políticos.

Littlewood (1996 apud PAIVA 2006, p.84) argumenta que um indivíduo pode apresentar três tipos de autonomia: 1) o de comunicador, ao empregar apropriadamente estratégias comunicativas no uso da língua; 2) o de aprendiz, ao lançar mão de estratégias de aprendizagem num aprendizado independente; 3) o de pessoa, ao promover significados e situações próprios de aprendizagem.  Paiva (2006, p. 84) acrescenta a esta classificação de autonomia o tipo de usuário de tecnologia, especialmente da Internet. 

O fenômeno da autonomia recebe de Paiva (2006) a seguinte definição:

[...] um sistema sócio-cognitivo complexo, que se manifesta em diferentes graus de independência e controle sobre o processo de aprendizagem, envolvendo capacidades, habilidades, atitudes, desejos, tomadas de decisão, escolhas e avaliação, tanto como aprendiz de língua ou como seu usuário, dentro ou fora da sala de aula.  (p. 88-9)

Sinais de Variáveis Afetivas em Narrativas de Aprendizagem

Partindo do embasamento teórico apresentado e, nesse primeiro momento, relacionando a aquisição de língua estrangeira com o fenômeno da afetividade – presente na idéia do filtro afetivo de Krashen – nota-se que aspectos afetivos positivos e negativos podem ser abstraídos dos registros de memória que constituem o corpus de análise deste trabalho. Fragmentos como os apontados abaixo, extraídos das narrativas (1 a 7), exemplificam a presença de variáveis afetivas positivas no processo de aquisição da língua:

(N1): “O meu interesse pela língua inglesa surgiu ainda na infância. Sempre gostei de ouvir músicas e assistir a filmes em inglês; adorava o som das palavras e o modo como as pessoas falavam esse idioma. Só fui começar ter aulas de inglês na 5ª série. Naquela época pude ter a confirmação de que de fato o inglês me atraía. Da 5ª ao 3º ano nunca tive dificuldades, ao contrário, sempre me saía bem nas avaliações e estudava tudo o que o professor passava com muito prazer. [...]” 

 

(N2): “Meu primeiro contato com a língua inglesa foi na 5ª série e costumo dizer que foi amor à primeira vista. Em uma das aulas a professora levou a música Imagine, dos Beatles e eu fiquei muito curiosa para saber o que estava escrito ali. [...] O meu processo de aprendizagem foi sempre regido por muita motivação e prazer e penso que são fatores importantíssimos para a aquisição de um idioma. [...]”

(N3): “O meu interesse pela Língua Inglesa deu-se por volta dos meus 14 anos. Eu morava em uma cidadezinha interiorana e fazia a 7ª série ginasial. O Inglês oferecido pela escola era muito básico e eu queria muito poder traduzir e entender as canções que eu ouvia. [...]”

 

(N4): “[...] Meu primeiro contato com a língua inglesa aconteceu quando comecei a estudar no ensino fundamental, antigo primeiro grau, numa escolinha pública. Não imaginava que poderia amar tanto este idioma. Fui orientado nos primeiros passos por meus professores de 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries em todos os assuntos básicos do inglês e eu gostei muitíssimo, porque queria falar em outra língua. [...]”

 

(N5): “Fui apresentada à língua inglesa na 5ª série do Ensino Fundamental, mas não chegava a ser uma aula de inglês, parecia apenas mais uma disciplina qualquer. O que não posso dizer é que foi totalmente inútil, pois, em casa, ao fazer as atividades é que notava que podia tirar proveito daquela nova língua. Lembro-me de estar cursando a 8ª série, quando a professora de inglês pediu para cantarmos uma música em coral e outra só, este último seria voluntariamente. Sem hesitar, aceitei as duas propostas. [...]”

 

(N6): “Quando eu tinha 11 anos de idade, uma escola de inglês foi aberta em minha cidade. [...] Ela [minha mãe] me matriculou sem me comunicar, mas eu não achei ruim, pois era vidrada no grupo musical sueco Roxette e achei que poderia melhorar minha pronúncia ao cantar as músicas com a minha melhor amiga. Comecei a amar a língua durante o curso, pois a minha professora era excelente e me estimulava bastante [ao] passar nas aulas as músicas da ‘minha banda’, ao me emprestar livros e [ao] me ouvir com toda a atenção do mundo”.  

 

(N7): “Foi em 1990, no Colégio [menciona o nome] de Vitória da Conquista, que tive minha professora de Inglês. [...] Ela, com delicadeza, logo no primeiro dia de aula, entrou na sala e começou a falar da importância de adquirir uma língua estrangeira. Logo após, deu exemplos de como o idioma, ou seja, a Língua Inglesa se encontrava inserida no português do Brasil e incentivos a adquirir livros e revistas com palavras escritas em inglês. Com o passar do tempo, ela começou a trabalhar na sala com letras de música, jogos, brincadeiras [...]. O ano se passou e houve, por minha parte, um aprendizado e um certo interesse pela língua, graças ao incentivo da professora. Ao continuar a ser professora da 6ª série no outro ano, o meu interesse pela língua estrangeira em questão aumentou e cheguei a tirar a nota máxima na matéria em quase todas as unidades. [...]”  

 

Como se pode notar, características afetivas positivas como motivação e alta autoconfiança são visíveis nos relatos dos aprendizes. Na perspectiva de Krashen, tais estudantes apresentam sinais de um baixo filtro afetivo, situação psicológica favorável à assimilação do input compreensível. Quanto mais motivado a aprender, autoconfiante, maior a evolução no processo de aquisição da LE.

Os extratos, a seguir, remetem a sinais de variáveis afetivas negativas por parte dos aprendizes:

(N8): “[...] O inglês me aterrorizava desde criança e estudante, quando entrei na escola, eu não tive bons professores. Todos estes não me incentivaram a falar o inglês. [...]”

 

(N9): “Meu primeiro contato com a Língua Inglesa não foi muito agradável, de modo que nunca passou pela minha cabeça que um dia teria tanta afinidade com ela a ponto de me aprofundar em seu estudo. Ao me ingressar no ginásio, nos primeiros dias de aula, num círculo comum de amigos, comentavam-se as aulas da então professora de Inglês. Os que já a conheciam falavam dela de tal forma que amedrontava a todos nós, os novatos. [...]” 

(N10) “[...] No ginásio, mais precisamente na 5ª série, tive o meu primeiro contato formal com a língua; diga-se de passagem, foi um tanto frustrante, em razão da falta de ‘habilidade’, digamos, da professora responsável pela matéria. [...]”

 

Nos depoimentos das narrativas 8, 9 e 10, percebem-se exemplos de medo, alta ansiedade e desmotivação no processo de aquisição da Língua Inglesa. Conforme postulado por Krashen, trata-se de sinais de um alto filtro afetivo. Nessas condições, tais variáveis afetivas atuam como barreiras que bloqueiam o input compreensível e prejudicam o progresso do aprendiz na aquisição da língua.

Como o filtro afetivo se correlaciona com a situação psicológica que o indivíduo apresenta em relação à língua que está sendo adquirida, o filtro poderá ser baixo ou alto a depender da característica afetiva do aprendiz. Considerando que as variáveis afetivas do indivíduo são passíveis de alterações, isso remete ao entendimento de que uma variável positiva pode ser alterada para uma negativa e vice-versa, o que modifica, conseqüentemente, o nível do filtro afetivo, que pode descer ou subir, ou o inverso. É o que se verifica a seguir:

 

Diminuição do “Filtro Afetivo”

Elevação do “Filtro Afetivo”

(N9): “[...] Ao me ingressar no ginásio, nos primeiros dias de aula, num círculo comum de amigos, comentavam-se as aulas da então professora de Inglês. Os que já a conheciam falavam dela de tal forma que amedrontava a todos nós, os novatos. De fato, foram necessários poucos minutos de aula para constatar que ela era rigorosa, severa, brava. Dessa forma, principalmente nos primeiros meses eu temia os dias nos quais teríamos aula de Inglês. Contudo, na medida em que o tempo ia passando, eu começava a entender a professora, a perceber que, apesar de severa, ela era justa, explicava bem... Eu entendia suas aulas. Talvez pelo fato de entender tão bem eu me destacava entre os outros alunos, recebendo elogios da professora, e, conseqüentemente, dos colegas, o que me despertava ainda mais a motivação para estudar, participar das aulas... Ao contrário de antes, passei a esperar ansiosamente pelas aulas de Inglês. O interesse e a certa facilidade foram se repetindo ao longo das séries e passei a buscar outras formas de aprendizagem, não somente às relacionadas à escola. [...]” 

(N10): “[...] Quando comecei a tocar violão, aos doze anos, tive oportunidade de praticar um pouco a pronúncia de letras de bandas que faziam sucesso à época. No ginásio, mais precisamente na 5ª série, tive o meu primeiro contato formal com a língua; diga-se de passagem, foi um tanto frustrante, em razão da falta de ‘habilidade’, digamos da professora responsável pela matéria. Nas séries subseqüentes do ginásio, com a troca da regente, senti-me um pouco mais motivado. Lembro-me de ter sido elogiado, durante as aulas, por ser detentor de uma boa pronúncia. Tudo isso, claro, motivado pelos constantes ensaios musicais. [...] Antes do Vestibular, porém, tive a grata satisfação de ter como professora, na 1ª série do segundo grau, a Sra. [o nome da professora é mencionado]. Dotada de um senso de observação apurado, profundo conhecimento e capaz de fazer uso de uma metodologia atraente, senti-me contemplado em meus ‘anseios lingüísticos’. Acredito ter sido esse um período de grandes descobertas quanto às minhas potencialidades. [....]”

(N11): “Comecei a ter contato com a Língua Inglesa na 5ª série, mas a cada ano que passava sempre aprendíamos o verbo To Be, assim se deu até a 8ª série. No Ensino Médio houve um avanço, pois aprendíamos Inglês de uma forma divertida, fazíamos dinâmicas em grupo e líamos textos interessantíssimos, com assuntos atuais como a coca-cola, a Aids e as estrelas, tudo isso nos motivava. [...]” 

(N12): “A língua inglesa entrou na minha vida de forma abrupta e de certa forma indesejada. Aos oito anos de idade minha mãe, sem me consultar, matriculou-me em um curso de inglês [...]. Com o passar do tempo esse pensamento mudou e, comecei a gostar, na medida que meu conhecimento aumentava, da sensação de saber algo mais do que as minhas amigas de infância. Elas me perguntavam sobre as músicas e os filmes estrangeiros, qual o significado das palavras e eu, que sempre fui tímida sentia-me útil e orgulhosa de mim mesma. [...]”

(N7): “[...] O ano se passou e houve, por minha parte, um aprendizado e um certo interesse pela  língua, graças ao incentivo da professora. Ao continuar a ser professora da 6ª série no outro ano, o meu interesse pela língua estrangeira em questão aumentou e cheguei a tirar a nota máxima na matéria em quase todas as unidades. Mas houve uma quebra desse interesse na 7ª e 8ª séries quando a professora saiu do colégio onde eu estudava e foi substituída por outra. Essa outra professora era rígida e cobrava assuntos os quais ela não passava para os alunos. Com alguma dificuldade eu passei para o Nível Médio, onde tive um professor de inglês sem nenhuma didática para o ensino da língua inglesa. Passava os mesmos assuntos que eu já tinha estudado anteriormente: o verbo [to] be, presente, passado, futuro e nada de novo para enriquecer o meu vocabulário. Essa pessoa foi o meu professor pelos três anos. [...]”

(N13): “O meu primeiro contato com a língua inglesa foi na 6ª Série, quando estudamos com o livro da 5ª Série [...]. A princípio amei a matéria. A professora era muito legal e até terminar a 8ª Série amava Inglês. No período do Ensino Médio, porém, a história mudou, passei a rejeitar o inglês e era aprovada com notas muito próximas da média. Era terrível! [...]”  

 

 

 

 

 

 

Na primeira coluna do quadro acima, percebe-se que variáveis como o medo, a alta ansiedade, a frustração e a desmotivação se revertem em alta auto-estima, autoconfiança, motivação e atitudes favoráveis ao professor, à metodologia de ensino e aos materiais utilizados; enquanto que na segunda coluna, têm-se exemplos de aprendizes motivados que perdem o interesse em aprender a Língua Inglesa e que passam a assumir atitudes desfavoráveis ao professor, ao conteúdo trabalhado e à metodologia empregada.  Com base nas narrativas supracitadas, é interessante observar que, na maioria das alternâncias do filtro, a motivação e a atitude prevalecem como as características afetivas mais freqüentes no processo de aquisição da Língua Inglesa.

Para Cittolin (2003), a motivação pode se originar do próprio ato de aprender, das próprias situações de aprendizagem, que seriam incentivos por si só; pode ter sua fonte no próprio aprendiz, que já carrega consigo estímulo para aprender; bem como pode surgir de influências e incentivos externos. A atitude diz respeito a um estado mental que surge como uma resposta favorável ou desfavorável aos objetos e situações deparados pelo aprendiz: atitudes quanto à aprendizagem de uma LE em específico; à aprendizagem de línguas estrangeiras em geral; aos falantes da língua; ao professor; ao material didático, à metodologia de ensino empregada. (Citollin, 2003).

Nos exemplos apontados, nota-se que os aspectos afetivos da motivação e atitude mantêm estreita conexão com os elementos, a saber: professor, metodologia, conteúdo e materiais empregados no ensino da língua estrangeira. Essa idéia é sustentada por Gardner (1990 apud CITOLLIN, 2003) quando considera que o desejo do aprendiz para aprender e continuar aprendendo a língua-alvo pode ser favorecido ou desfavorecido, por exemplo, pela ação do professor.

A análise das narrativas, em geral, permite considerar que, num ambiente de sala de aula, a atenção do professor de LE precisa estar continuamente voltada para a redução de variáveis afetivas negativas que possam prejudicar o progresso do indivíduo na aquisição da Língua Estrangeira. É preciso então que se criem condições para que os alunos estejam tranqüilos e sem ansiedade; ao mesmo tempo, estejam motivados, confiantes e interessados em aprender a língua-alvo.

Sinais de Autonomia em Narrativas de Aprendizagem

Nessa segunda etapa de estudo, relacionando, agora, o fenômeno da autonomia com o processo de aquisição de LE, algumas considerações também podem ser tecidas a partir das memórias de aprendizagem da Língua Inglesa utilizadas como o corpus deste trabalho.

Inicialmente, entre as narrativas que apontam para alguns indícios de autonomia na aprendizagem da língua-alvo, pode-se notar que tais indícios estão visivelmente relacionados, em sua grande essência, com comportamentos autônomos dos aprendizes desenvolvidos fora do ambiente da sala de aula. Além disso, os sinais de autonomia perceptíveis variam de aprendiz para aprendiz. A maioria deles apresenta um grau menor de independência e controle sobre o processo de aprendizagem, como se percebe nos exemplos que se seguirão:

(N14): “O primeiro contato que tive com a Língua Inglesa foi na 5ª série do Ensino Fundamental. Gostava muito das aulas. Quando entrei no Ensino Médio, numa escola pública, não tinha a disciplina na grade curricular. Fiquei muito decepcionada, pois queria aprender mais. Somente na metade do 3º ano foi que chegou um professor para ensinar a tal disciplina. Quando resolvi fazer vestibular para ingressar no curso de Letras, decidi que só o faria se pudesse cursar as duas licenciaturas (Português e Inglês) ao mesmo tempo. Assim, pegava uma gramática e ficava estudando as regras da língua e traduzindo textos pequenos e de níveis básicos. Adquiri muito vocabulário, no entanto, não sabia a pronúncia de 99% das palavras que lia. [...]”  

 

(N5): “Fui apresentada à língua inglesa na 5ª série do Ensino Fundamental, mas não chegava a ser uma aula de inglês, parecia apenas mais uma disciplina qualquer. [...] Lembro-me de estar cursando a 8ª série, quando a professora de inglês pediu para cantarmos uma música em coral e outra só, este último seria voluntariamente. Sem hesitar, aceitei as duas propostas. Naquela hora já estava gostando muito do inglês, não sabia uma ‘vírgula’, mas a ousadia era maior. Lá estava eu, todo tempo livre em casa com uma fita k7, dedos nos botões play, pause, rewind do pobre aparelho de som na tentativa desesperada de copiar a pronúncia das palavras que via nas letras das músicas ‘We are the world’ e ‘Hello’. [...]”

 

(N9): “[...] Ao me ingressar no ginásio, nos primeiros dias de aula, num círculo comum de amigos, comentavam-se as aulas da então professora de Inglês. Os que já a conheciam falavam dela de tal forma que amedrontava a todos nós, os novatos. [...] Contudo, na medida em que o tempo ia passando, eu começava a entender a professora, a perceber que, apesar de severa, ela era justa, explicava bem... [...] O interesse e a certa facilidade foram se repetindo ao longo das séries e passei a buscar outras formas de aprendizagem, não somente às relacionadas à escola: gibis em inglês, músicas, livros de outras séries, etc. Lembro-me que um dos meus irmãos estudava em uma escola de línguas, mas eu que respondia a maioria dos seus exercícios, explorava os CD´s que acompanhavam esses livros, aprendendo cada vez mais. [...]”

 

Na narrativa 14, é possível abstrair do relato da aprendiz que,  por insatisfação do seu domínio lingüístico da LE, diante do objetivo estabelecido de se habilitar em Língua Inglesa no ensino superior, ela se vê impelida à construção de uma aprendizagem mais autônoma e passa a lançar mão de estratégias que pudessem favorecer o alcance de seu objetivo (utilizava gramática e traduzia textos pequenos e básicos), embora na auto-avaliação da aprendiz as estratégias não tenham surtido o resultado esperado. 

Na narrativa 5 – apesar da situação inicial desfavorável à aprendizagem da língua, “não chegava a ser aula de inglês”, provavelmente por se tratar de um ensino conduzido com o foco na forma e não no input compreensível –, a narrativa da aprendiz revela sinais da construção de um comportamento autônomo determinado pela autoconfiança e motivação da estudante em aprender a Língua Inglesa. Em determinado momento do processo de aprendizagem, a aprendiz assume não dispor de domínio lingüístico, mas, motivada, passa a traçar um plano para a melhora da pronúncia dos vocabulários, utilizando a música como elemento autêntico da LE.

Da mesma forma que no exemplo da N5, é possível observar que, apesar da aprendizagem ser inicialmente desfavorecida, a narrativa 9 também dá sinal de um certo comportamento autônomo resultante de uma característica afetiva do próprio estudante; nesse caso, a assunção de uma atitude positiva em relação à professora, momento a partir do qual cresce o interesse e o entusiasmo pela língua estrangeira, o que leva o aprendiz a planejar meios que favorecessem à sua aprendizagem, a recorrer a elementos autênticos da língua-alvo, a exemplos de “gibis em inglês, músicas”, bem como  a fazer uso de materiais didáticos como “livros de outras séries”, além de livro e CDs de uma escola de idioma na qual estudava o irmão.

No fragmento que se segue, ao contrário do exemplo anterior, a autonomia do aprendiz cresce da assunção de uma atitude negativa que o aprendiz passa a manifestar em relação aos professores da LE (sucessores da primeira professora) e ao conteúdo por eles trabalhado (repetitivo e sem input compreensível):

(N7): “Foi em 1990, no Colégio [menciona o nome] de Vitória da Conquista, que tive minha primeira professora de Inglês. Não me recordo o nome dela [...], logo no primeiro dia de aula entrou na sala e começou a falar da importância de adquirir uma língua estrangeira. [...] Ao continuar a ser professora da 6ª série no outro ano, o meu interesse pela língua estrangeira em questão aumentou e cheguei a tirar a nota máxima nas matérias em quase todas as unidades. Mas houve uma quebra desse interesse na 7ª e 8ª séries quando a professora saiu do colégio onde eu estudava e, foi substituída por outra. Essa outra professora era rígida e cobrava assuntos os quais ela não passava para os alunos. Com alguma dificuldade eu passei para o nível médio, onde tive um professor de inglês sem nenhuma didática para o ensino da língua inglesa. Passava os mesmos assuntos que eu já tinha estudado anteriormente: o verbo [to] be, presente, passado e futuro e nada de novo para enriquecer o meu vocabulário. Essa pessoa foi o meu professor pelos três anos e foi nesses anos que comecei a estudar a língua inglesa sozinho. Sem ajuda nenhuma, comecei saber um pouco de gramática, mas nada de pronúncia. A melhora com a língua só veio a se tornar concreto quando meu irmão ganhou uma bolsa de estudos de um curso de idiomas aqui da cidade e como não se interessava pela língua inglesa, passou-a para mim. [...] fazia o maior esforço para tirar boas notas no curso de idiomas, mas senti que poderia ir além e, mesmo com vocabulário mínimo, não ficava só pegando assuntos na sala de aula. Fazia de tudo para falar a língua que estava estudando. Primeiro com as palavras básicas: Hi!, ou How are you? Ou Good afternoon. Depois eu fui melhorando meu vocabulário na língua e comecei a formar parágrafos e pequenos textos. Eu queria aprender mais...[...]”  

 

Verifica-se acima que a partir da atitude assumida, o aprendiz busca por certo controle sobre sua aprendizagem, na medida em que começa a estudar sozinho a gramática da LE, o que não lhe mostra suficiente. Então, passa a estudar em um curso de idioma (cuja bolsa de estudos foi cedida pelo irmão que não tinha interesse pela língua estrangeira) e começa a alcançar input compreensível. Percebe-se, também, que o aprendiz manifesta certo comportamento autônomo na criação de situações propícias ao output compreensível da língua-alvo.

Como poderá ser percebido abaixo, N2 e N3 também são exemplos de comportamentos autônomos motivados por alguma característica afetiva das aprendizes em relação à LE. Em tais fragmentos, as aprendizes denotam o desejo em aprender a língua-alvo, mas vêem suas necessidades não satisfeitas pela professora (N2) ou pelo curso (N3):

(N2): “Meu primeiro contato com a língua inglesa foi na 5ª série e costumo dizer que foi amor à primeira vista. Em uma das aulas a professora levou a música Imagine, dos Beatles e eu fiquei muito curiosa para saber o que estava escrito ali. A professora comentou brevemente o conteúdo da música, mas não me satisfez. Eu queria saber o significado de cada uma daquelas palavras, ao chegar em casa peguei um dicionário inglês-português e fui fazer a tradução. A partir daí, todas as músicas que escutava em inglês eu gravava, traduzia a letra e ficava ouvindo até aprender.  Tornou-se um hobbie  e eu passei a andar sempre com um dicionário. Nas horas vagas, ficava descobrindo palavras novas e fazia listas imensas de vocabulário. [...]”    

 

(N3): “O meu interesse pela Língua Inglesa deu-se por volta dos meus 14 anos. Eu morava em uma cidadezinha interiorana e fazia a 7ª série ginasial. O Inglês oferecido pela escola era muito básico e eu queria muito poder traduzir e entender as canções que eu ouvia. Eu morava com minha família em uma fazenda e não tínhamos acesso a tecnologias como a TV, pois não havia luz elétrica no local. As canções eram ouvidas por um rádio, movido a bateria. Era, portanto, uma felicidade para mim quando, no período das férias escolares, podia vir a Vitória da Conquista – cidade mais próxima – para ficar na casa de uma grande amiga. Assim, eu tinha acesso a coisas que apenas imaginava ter em casa, como assistir a filmes e ouvir quantas músicas quisesse, sem me preocupar com o tempo de duração das pilhas. E foi numa dessas férias que ganhei dos meus pais uma coleção de livros de Inglês que, juntamente com fitas K-7, constituía-se em um Curso de Inglês à distância na época. Estudei durante todo o tempo com um gravador movido a pilhas, sem professores e colegas presenciais, mas foi uma das experiências de aprendizagem mais enriquecedoras que já tive na vida; e aquela caixa de livros, um dos presentes mais caros que já ganhei. [...]”   

 

Na narrativa 2, percebe-se que a aprendiz assume, desde cedo, algum controle da sua aprendizagem, ao recorrer ao dicionário para obtenção de input compreensível. Na narrativa 3, infere-se que a autonomia da aprendiz, dada a sua situação econômica, começa a se constituir, essencialmente, a partir do momento em que ela tem acesso a uma coleção de livros com fitas cassetes, recebidas de presente pelos pais. A aprendiz percebe o bom resultado de seu comportamento autônomo em relação à aprendizagem da língua-alvo, mas também reconhece a ausência do que seria a importante troca de sua experiência com professores e com colegas.

Os dois próximos depoimentos apresentam algum diferencial em relação aos demais registros de memória que merece ser destacado nessa análise:

(N10): “O meu interesse pela língua inglesa começou sem que eu me desse conta do fato. Ainda criança, gostava de acompanhar, à minha maneira, as músicas executadas nesse idioma, no equipamento de som que tínhamos em casa. Quando comecei a tocar violão, aos doze anos, tive oportunidade de praticar um pouco a pronúncia de letras de bandas que faziam sucesso à época. No ginásio, mais precisamente na 5ª série, tive o meu primeiro contato formal com a língua; diga-se de passagem, foi um tanto frustrante, em razão da falta de ‘habilidade’ , digamos, da professora responsável pela matéria. Nas séries subseqüentes do ginásio, com a troca de regente, senti-me um pouco mais motivado. Lembro-me de ter sido motivado pelos constantes ensaios musicais. Até então, não tivera a exata dimensão daquilo que eu poderia vir a ser como profissional. [...] Antes do Vestibular, porém, tive a grata satisfação de ter como professora, na 1ª série do 2º grau, a Sra. [menciona o nome]. Dotada de uma metodologia atraente, senti-me contemplado em meus ‘anseios lingüísticos´ [...]. De volta ao episódio do Vestibular, um fato me chamou a atenção: o meu índice de acertos na prova de inglês beirou os 80%! Naquele momento, tive a convicção de que deveria me debruçar no estudo mais sistemático da língua. Ato contínuo, matriculei-me no Instituto Brasil-América (IBA), de propriedade da professora [menciona o nome], quando então um mundo novo se descortinou para mim. Foram três anos (uma hora por dia, cinco vezes por semana do mais vertiginoso crescimento que pude experimentar, a ponto de terem-me confiado as quatro séries do ginásio de um colégio particular para lecionar. Assim, começou a minha ‘epopéia’ como professor. Como não tivesse nenhuma experiência com o magistério, tive que me desdobrar para dominar os preceitos da gramática. O vocabulário, eu o adquiri no IBA e nas leituras que fazia, aliado a um curso com fitas cassete emprestado de um amigo, o qual trazia canções pop cifradas para violão, entremeadas por exercícios diversos, incluindo tradução. Três anos após o término do curso de inglês, prestei Vestibular para Letras, na Universidade do Sudoeste da Bahia, UESB, em Vitória da Conquista. Sem jamais deixar de lecionar, pude aprofundar-me nos estudos lingüísticos e literários, condição imprescindível para o exercício pleno da profissão. [...]”  

 

(N15): “[...] Meu primeiro contato com a língua inglesa aconteceu quando comecei a estudar no ensino fundamental, antigo primeiro grau, numa escolinha pública. Não imaginava que poderia amar tanto este idioma. Fui orientado nos primeiros passos por meus professores de 5ª, 6ª. 7ª e 8ª séries em todos os assuntos básicos do inglês e eu gostei muitíssimo, porque queria falar uma outra língua. Eu e meus colegas não tínhamos livros, todos os assuntos eram anotados em nossos cadernos, mas eu tinha um grande interesse em aprender, então eu era um inquiridor. Eu queria saber o significado e a pronúncia das palavras deste modo eu procurava livros usados, apagava os exercícios respondidos e os respondia novamente. Consultava dicionários e examinava não somente o significado das palavras mas também sua pronúncia. Também adquiri cursos com fitas  K7, CDs e assisti algumas aulas na TV. Passei pelo Ensino Médio, antigo 2º grau e lá continuei este processo. Freqüentei alguns cursos como o CCAA por algum tempo. Entrei para  faculdade e lá continuei a estudar inglês. [...] Não posso desconsiderar também que tenho trabalhado o aprendizado (de) inglês através do auto-estudo. Tenho estudado sozinho e como minhas ferramentas de estudo tenho usado a Internet, livros, dicionários e outros meios. Através do dicionário tenho estudado e aprendido morfologia, gramática e fonética, sem falar que tenho usado livros de gramática em particular. Tenho lido vários livros em inglês e um de especial significado para (mim) tem sido a Bíblia. A leitura da bíblia tem contribuído para o aumento de meu vocabulário. Um outro recurso agradável que também tenho usado é a música. [...]”  

 

Na narrativa 10, o diferencial está no exemplo do aprendiz que teve autonomia para recorrer a um curso de idiomas. Está clara a tomada de decisão consciente em prol da própria aprendizagem da sua LE. No relato da narrativa 15, aos recursos empregados pelo comportamento autônomo do aprendiz – comuns à maioria dos registros aqui analisados (consultar dicionários, utilizar livros didáticos, músicas, fitas cassetes e CDs) – está acrescido o uso da Bíblia e da Internet, como outros recursos autênticos da língua-alvo.

Para finalizar as sinalizações de comportamentos autônomos presentes no corpus deste estudo, a narrativa, a seguir, destaca-se por trazer o exemplo de um aprendiz com um maior grau de independência e controle sobre o seu processo de aprendizagem da Língua Estrangeira:

(N16): “Estudei Inglês por um ano. Neste período, lia com bastante regularidade todo material que possuía: uma gramática, livros didáticos, revistas, letras de música, etc. Nessa época, utilizava um pequeno dicionário inglês /português português/inglês em minhas leituras que visavam a ampliação do vocabulário e a consolidação da gramática. Também escutava intensamente o inglês através de fitas cassetes, músicas, filmes e principalmente por meio de um rádio de ondas curtas com o qual acompanhava os programas da Voz da América. Atribuo a esta intensa prática auditiva a familiarização com o idioma. Treinava a fala ensaiando diálogos bem informais com um amigo que fazia um curso de inglês e, depois, conversando com professores de cursos de idiomas e finalmente com missionários americanos. Sempre aproveitava bem as raras oportunidades de falar com um nativo. Em relação à habilidade da escrita, escrevia composições sobre temas diversas e cartas a um pen pal. Meu aprendizado do grego moderno foi mais difícil visto que não possuía gramática nem dicionário. Estudei grego também por um ano e simultaneamente ao inglês. Utilizava edições de uma revista religiosa em grego e em português. Através da comparação das duas revistas, ia reduzindo as regras gramaticais. Depois de dois meses, passei a escutar a emissora grega Voz da Grécia que transmitia em ondas curtas programas em grego e inglês. Com persistência e regularidade, cheguei a um ótimo entendimento da língua grega falada. Leio e escrevo bem em grego. No entanto, pratico pouco a conversação, pois é difícil encontrar gregos em Vitória da Conquista. Uma das raras vezes que pratiquei a fala foi com o professor  [menciona o nome], o qual me ajudou a manter o contato com o idioma grego.”

 

Vê-se, ao analisar a narrativa 16, que esta compartilha com a reflexão que Paiva (2006, p. 82) faz das definições de autonomia propostas por Little (1991) e Dickson (1987) que, para a autora, aplicar-se-iam ao mais alto grau de autonomia: “um aprendiz capaz de escolher o que quer aprender, como e quando, sem as restrições de um contexto educacional formal”.

Ademais, o registro faz ponte com as idéias de Little (1991 apud PAIVA, 2006, p. 82) na medida em que o aprendiz manifesta sua capacidade em:

  • planejar/tomar decisões (ele traça planos que focam a leitura e a audição, a fala e a escrita na língua-alvo);
  •  monitorar (mostra-se capaz de saber como está nas situações regulares e intensas de uso de elementos autênticos da língua estabelecidas por ele, procura aproveitar bem as oportunidades desse uso);
  •  avaliar o processo de aprendizagem (ele atribui, por exemplo, a familiarização com o idioma à intensa prática auditiva).

Além disso, o aprendiz dessa narrativa parece apresentar os três tipos de autonomia classificados por Littlewood (1996 apud PAIVA, 2006, p. 84-85):

  • o de comunicador (quando ele elucida que, em determinado momento da aprendizagem, fazia uso real da língua conversando com professores de cursos de idiomas e finalmente com missionários americanos);
  • o de aprendiz (quando ele informa que se utilizava de estratégias individuais de aprendizagem adequadas para cada finalidade desejada: ao usar o pequeno dicionário inglês/português, português/inglês nos momentos de leitura que visavam à ampliação do vocabulário e à consolidação da gramática; ao utilizar fitas cassetes, músicas, filmes e rádio de ondas curtas por meio dos quais buscava uma audição intensa de elementos autênticos da língua; ao escrever composições sobre temas diversos e cartas a um pen pal para aprimorar a habilidade da escrita.
  • o de pessoa (quando ele sinaliza, por exemplo, que criava seus contextos pessoais de aprendizagem, ao aproveitar bem as raras oportunidades de conversar com um nativo ou ao se corresponder com um pen pal por meio de cartas).

A análise do comportamento autônomo nesse registro de memória permite traçar, ainda, outras considerações:

  • o aprendiz parece se servir, igualmente, do comportamento autônomo – como se serviu no aprendizado do Inglês – para aprender, por conta própria, outra língua estrangeira, o grego moderno. Neste caso, não seria errado pressupor que a autonomia do aprendiz em adquirir uma LE tenha favorecido a aquisição de uma outra língua estrangeira;
  • o aprendiz apresenta os dois fatores essenciais ao conceito de  autonomia  postulado por Littlewood (1996, apud PAIVA 2006, p. 84): habilidade e desejo.  Nesse sentido, são visíveis a vontade, a determinação e a consciência do aprendiz na aquisição, nesse caso, de duas línguas-alvos (inglês e grego), bem como, pode-se inferir que, em nenhum momento, dadas as habilidades do aprendiz, as estratégias, por ele utilizadas, surtiram algum efeito indesejado nesse processo – apesar das dificuldades em encontrar elementos autênticos da língua grega ou de estabelecer conversação por meio dessa LE, em específico.

Desse modo, e ainda com foco no fenômeno da autonomia, constata-se, a partir dos registros de memória analisados ao longo deste trabalho, que:

  • os sinais de comportamento autônomo dos aprendizes acontecem, essencialmente, fora do ambiente da sala de aula;
  • a autonomia varia de aprendiz para aprendiz;
  • a maioria dos aprendizes apresenta um comportamento autônomo mais tímido;
  • a construção do comportamento autônomo é influenciado por fatores internos (desejo de aprender; características afetivas do aprendiz como autoconfiança, motivação, atitudes positiva ou negativa em relação à figura do professor ou ao curso) e fatores externos (como condição socioeconômica).

Nesse sentido, é possível tecer as seguintes reflexões:

  • a ausência de comportamento autônomo na sala de aula pode estar atrelada ao papel que o aluno e o professor têm desempenhado naquele ambiente – o que sugere que o ensino de LE não está centralizado no aluno, o que sugere que não há o reconhecimento de que o aprendiz terá um melhor resultado na aprendizagem da LE caso  também se responsabilize por sua própria aprendizagem;
  • é preciso que o professor esteja atento ao diferentes graus de autonomia manifestados de aprendiz para aprendiz, e,  inclusive, esteja ciente da possibilidade de variação do nível desse fenômeno num mesmo indivíduo;
  • diversos fatores podem interferir positiva ou negativamente na construção de um comportamento autônomo do aprendiz de LE – o próprio professor se constitui um desses elementos – dessa forma, “cabe ao professor identificar oportunidades para deixar fluir e permitir que os aprendizes assumam controle de seu processo de aprendizagem e desenvolvimento da autonomia”. (Little, 1998 apud BRAGA, p. 53)

Considerações Finais

A presença e a ausência de motivação, assim como a manifestação de atitudes favoráveis e desfavoráveis dos aprendizes representam os aspectos da afetividade inferidos com maior freqüência nos registros de memória analisados nesse trabalho. Tais aspectos, por sua vez, mantêm uma forte ligação com os seguintes elementos: professor, metodologia, conteúdo e materiais empregados no ensino de Inglês como língua estrangeira. 

No que diz respeito ao fenômeno da autonomia, abstrai-se das narrativas analisadas que este se manifesta, essencialmente, fora do ambiente da sala de aula; num menor grau de independência e controle sobre o processo de aprendizagem; influenciado por fatores internos como desejo de aprender, características afetivas do aprendiz (autoconfiança, motivação, atitudes positiva ou negativa em relação à figura do professor ou ao curso) e fatores externos como condição sócio-econômica.

Este estudo – ao relacionar os dados apontados acima com o contexto de educação formal –  sugere que, se o que se espera é que os aprendizes adquiram a língua-alvo, não se pode passar despercebido pelo professor o papel decisivo que também ele tem a desempenhar nesse processo. Assim sendo, é preciso que o professor coloque em prática ações pedagógicas centradas no aluno; volte sua atenção de modo contínuo para as variáveis afetivas dos aprendizes; considere as diferenças individuais; e favoreça a construção de um comportamento cada vez mais autônomo por parte dos aprendizes no processo de aquisição da língua estrangeira.

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[1] Especialista em Inglês como Língua Estrangeira pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

[2] Prof. Ph.D. do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

[3] Ver mais informações em http://www.veramenezes.com/amfale.htm.