A FORMAÇÃO DO PROFESSOR E A AUTONOMIA NA APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA NO ENSINO BÁSICO

 

Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG/CNPq)

Lindiane Ismênia Costa Vieira (UFMG/CNPq/PIBIC)

  

Abstract: This paper discusses the role of autonomy in the process of English language learning of a group of 28 high school students. Language learning narratives were analyzed taking into account the definition of autonomy as “the ability to take charge of one’s own learning” (Holec, 1981, p.3). The data reveal that high school learners do not show much autonomy and are not stimulated towards more autonomous learning. This result was compared to teachers’ learning histories and our conclusions indicate that more reflection on autonomy should be done in language teachers’ education programs.

Resumo: Este trabalho discute a autonomia na aprendizagem de inglês de um grupo de 28 alunos do ensino básico. Foram coletadas 28 narrativas de aprendizagem. Os relatos foram analisados de acordo com o conceito de Holec (1981,p.3) que diz que “ser autônomo é ter a capacidade de se responsabilizar pela própria aprendizagem”. Os dados revelam que os aprendizes demonstram pouca autonomia e que não são estimulados a uma aprendizagem mais autônoma. Esse resultado foi comparado com narrativas de professores de inglês e as conclusões nos levam a propor uma reflexão sobre autonomia nos cursos de formação de professores.

Palavras chave: narrativas de aprendizagem; aprendizes de inglês; ensino básico; professores.

 

  Contextualizando

 

Segundo Cunha e Mello Sobrinho (1982), a palavra educar vem do latim educare, por sua vez ligada a educere, verbo composto do prefixo ex (fora) + ducere (conduzir, levar), e significa literalmente ‘conduzir para fora’, ou seja, preparar o indivíduo para o mundo. Na relação entre colonizadores e colonizados, sabemos que uma nação, necessariamente, não sai ilesa do empreendimento colonizador. A intenção camuflada da conduta civilizadora nada mais é do que a de conduzir um povo selvagem, menos “civilizado”, para o mundo daqueles considerados mais instruídos e providos de bens materiais. De acordo com a etimologia da palavra educação, podemos perceber que os europeus conduziram os colonos ao mundo europeu e mudaram suas crenças, ampliando, assim, cada vez mais, seu território e seu poder.    

A educação no Brasil, conforme relata Piletti (1991, p.31), inicia-se por volta dos séculos XVI e XVII, em um clima de desconfiança e medo. Nas aldeias, ou em escolas ambulantes improvisadas, os índios recebiam dos europeus conhecimentos enriquecedores e novos que vinham sempre, da parte do colonizador, acompanhados da intenção de aprisioná-los ao mundo e à cultura do homem branco, retirando-lhes a autonomia e impondo-lhes uma outra língua.

Piletti (1991, p. 33), com base em Freyre (1993), afirma que

 

A história do contato das raças chamadas superiores com as consideradas inferiores é sempre a mesma. Extermínio ou degradação. Principalmente porque o vencedor entende de impor ao povo submetido a sua cultura moral inteira, maciça, sem transigência que suavize a imposição. O missionário tem sido o grande destruidor de culturas não européias, do século XVI ao atual; sua ação foi mais dissolvente que a do leigo.

 

Já dizia Sófocles, filósofo da Grécia Antiga, "mortal algum recebeu educação sem sofrer”.[1] Esse processo doloroso da aprendizagem desvaloriza os conhecimentos prévios dos educandos, pois os considera ultrapassados, em detrimento de novos conhecimentos que, ciclicamente, tomam lugar dos primeiros.

Schmitz (1982), citado em Piletti (1989, p.33), define a aprendizagem como sendo “um processo de aquisição e assimilação, mais ou menos consciente, de novos padrões e novas formas de perceber, ser, pensar e agir”.  Referindo-se ao processo educacional brasileiro, principalmente no período colonial, pode-se dizer que a educação não foi apenas um ato de transmissão de conhecimento ou, pelo menos, de troca de conhecimentos, mas, contrariamente, foi um processo de crime, refletido na imposição de uma nova cultura e de valores a um povo "bestial e de pouco saber", segundo as palavras de Caminha.[2]

Domesticados pelo domínio colonial, os índios, como lembra o autor, passaram a freqüentar escolas de ler e escrever no Brasil. Podemos dizer que o ensino da língua portuguesa foi uma das primeiras preocupações que os colonizadores e padres jesuítas tiveram na educação indígena. Afinal, seria através da “comunicação” que os colonizadores poderiam padronizar e definir o comportamento de milhares de índios que falavam a língua Tupi, que também foi aprendida por alguns catequizadores:

 

Os padres desde o séc. XVI aprenderam a língua dos índios, não só para instruir, mas também para conquistar através dela com mais facilidade os selvagens à sua fé, e às suas idéias religiosas e sociais. A cultura indígena foi lentamente sendo substituída, não apenas pela língua, mas na sua variedade e forma também (THEOBALDO, 2003).

 

Mais tarde, as escolas de educação jesuítas se alastraram por quase todo o território brasileiro e essa prática teve seu auge e declínio entre os séculos XVI e XVIII. (PILETTI, 1991, p. 33). Nos primeiros dois séculos, a preocupação básica dos padres era a de expandir o idioma. Em escolas fixas ou ambulantes, os padres adentravam novos territórios em busca dos “gentios” para catequizá-los e os instruir para uma nova realidade. 

 

Os índios eram submetidos a um processo de descaracterização cultural através da catequese e da própria convivência com o branco. Dessa forma, muitos foram perdendo sua identidade cultural, substituindo seus valores, crenças e costumes pelos valores, crenças e costumes do colonizador europeu. Transformaram-se assim em seres marginalizados e explorados dentro da sociedade de brancos (PILETTI, 1991, p. 20).

 

Para se ter uma idéia do empreendimento realizado pelos jesuítas na aprendizagem da língua portuguesa pelos índios, até o ano de 1.500, cerca de 1.300 línguas indígenas eram faladas no Brasil. Porém, com a chegada dos colonizadores, vieram também as doenças epidêmicas, que dizimaram milhares de índios. Do mesmo modo, “a imposição dos costumes estrangeiros, obrigando a uma assimilação forçada, levou muitos povos indígenas à morte física e cultural. Atualmente, 180 línguas são encontradas pelo território brasileiro, o que significa a destruição de cerca de 85% dessa diversidade”.[3]

“A língua é uma das mais importantes chaves para se iniciar o conhecimento sobre um povo”[4]. É através da língua que se conhecem a cultura, a religião, os costumes e muito da identidade de uma nação.  Aprender uma língua estrangeira é permitir-se adentrar na cultura e na identidade do outro, do estrangeiro.

Atualmente, no Brasil, há um interesse muito grande pela aprendizagem de línguas estrangeiras, porém as circunstâncias desse fenômeno são diversas das identificadas na época colonial. Hoje, semelhante à imposição da língua portuguesa aos índios no período colonial, temos a imposição da língua inglesa nas escolas primárias, na rede de ensino fundamental, em universidades e, principalmente, em escolas particulares de idiomas, que, raramente, oferecem outras línguas diferentes do inglês. Essa imposição é decorrente de nossa dependência científica, cultural e econômica da hegemonia de países de língua inglesa.

A legislação brasileira prescreve a obrigatoriedade do ensino de uma língua estrangeira moderna na segunda metade do ensino fundamental e no ensino médio, este último nível acrescido da possibilidade, de acordo com as condições da escola, de mais uma língua.

Apesar de o Brasil ter uma população composta de muitos descendentes de imigrantes japoneses, italianos, alemães, dentre outros, prevalece o ensino de língua inglesa e os aprendizes não têm autonomia para escolher a língua que mais lhes interessa. É a escola que decide que língua ensinar e essa escolha, geralmente, recai sobre o inglês, em função das demandas mais imediatas da sociedade.

A língua espanhola, após as negociações para a implementação do Mercosul, conseguiu um pouco de destaque, mas ainda não compete com a língua inglesa, que predomina em todos os níveis. O Projeto de lei torna o ensino de espanhol obrigatório nas escolas públicas está em tramitação e com grandes chances de ser aprovado. Será mais uma imposição do governo e mais uma vez o aluno não terá a opção de escolher a língua que melhor lhe convém. Do jardim de infância à universidade, identifica-se, portanto, por parte da população brasileira uma total falta de autonomia na escolha do(s) idiom(as) que deseja ou necessita aprender.

 

Autonomia

 

Crabbe (1993) apresenta três argumentos para justificar a autonomia: o ideológico, o psicológico e o econômico. O argumento ideológico se refere ao direito de ser livre para exercer suas próprias escolhas. O econômico, próprio das classes privilegiadas, se refere à capacidade de financiar a própria educação, pois as sociedades, geralmente, não têm recursos suficientes para prover instrução para todos. O psicológico explica que aprendemos mais quando nos responsabilizamos pela própria aprendizagem.

Holec (1981) privilegia o viés psicológico ao definir autonomia como “a capacidade de se responsabilizar pela própria aprendizagem” (p.3), que ele diz abranger os seguintes aspectos: determinar os objetivos; definir conteúdos e progressões; selecionar métodos e técnicas para serem usadas; monitorar o processo de aquisição e avaliar o que foi adquirido (p.4).

No contexto das escolas públicas, como já vimos, os alunos não são livres para escolher a língua que querem aprender e, geralmente, não são economicamente autônomos para conseguir financiar seus estudos em cursos livres de idiomas. Quanto a responsabilizarem-se pela própria aprendizagem, isso, também, dependerá de uma série de fatores. Paiva (2005a) argumenta que

 

Definir autonomia não é uma tarefa fácil, principalmente, porque há poucos contextos onde os aprendizes podem, realmente, ser autônomos.  Os alunos, raramente, estão totalmente livres de interferência de fatores externos que funcionam como obstáculos para a desejada autonomia.

 

Autonomia pode ser compreendida, também, de acordo com Little (1996, p. 23), como “capacidade de auto-direção no planejamento, monitoramento e avaliação de atividades de aprendizagem”. Consideramos esses fatores relevantes, pois já endossam a idéia de centralizar a atitude do aprendiz como fator primordial para o processo de autonomia na aprendizagem.

Dickinson (1987) é mais contundente ao definir o termo como “responsabilidade total pela tomada e implementação de todas as decisões a respeito da própria aprendizagem”.

Entretanto, dificilmente um aprendiz, no contexto escolar, terá o direito de escolher objetivos, conteúdos, métodos, pois a estrutura de poder escolar não dá margem para ações autônomas. No entanto, os alunos podem ter iniciativas paralelas ao contexto escolar formal, como podemos comprovar em algumas narrativas de aprendizagem do corpus do projeto AMFALE (Aprendendo com Memórias de Falantes e Aprendizes de Línguas Estrangeiras), disponível em http://www.veramenezes.com/amfale.htm 

Nesse sentido, Crabbe (1993, p.443) tem uma atitude mais crítica e define autonomia como “direito de ser livre para exercitar suas próprias escolhas, na aprendizagem e em outras áreas, e não se tornar vítima de escolhas feitas por instituições sociais”. De modo semelhante a Crabbe, Young (1986), citado por Pennycook (1997, p.35), define o termo como “ser autor do próprio mundo, sem se sujeitar aos desejos do outro”. Para Pennycook (1997, p.35), o conceito é explicitado da seguinte maneira: “tornar-se autor do próprio mundo, transformar-se em um aprendiz e usuário autônomo de língua não é somente uma questão de aprender a aprender, mas também de aprender como lutar por alternativas culturais”.

Em primeira instância, o conceito de autonomia em si pode gerar compreensões errôneas a respeito do seu real significado em um processo de aprendizagem de língua estrangeira. O individuo autônomo não é, necessariamente, um aprendiz individualista, que não freqüenta aulas e que não se relaciona com o professor ou com outros aprendizes. Os pesquisadores citados acreditam que o exercício da autonomia é algo que pode ser alcançado por qualquer aprendiz, desde que o mesmo tome a direção de seu processo de aprendizagem.

Sabemos que a autonomia não é uma capacidade inata, mas trata-se de uma característica que pode ser conquistada pelo aprendiz em seu percurso de aquisição do idioma. Entretanto, é bem difícil imaginar um aprendiz autônomo que tenha como instrutor um professor tradicional que limita o crescimento do aprendiz, não deixando que ele trace seu próprio caminho e mantendo-o atado ao seu método rígido e inflexível de “ensinar”. Esse tipo de conduta tradicional pode vir a impedir o crescimento do aprendiz, uma vez que esse professor limita os horizontes dos aprendizes, criando obstáculos para a utilização de estratégias individuais de aprendizagem.

Em uma aprendizagem autônoma, o professor é aquele que age como um facilitador e conselheiro. Paiva (1998, p. 81) advoga que o professor pode contribuir para formar aprendizes mais bem-sucedidos e autônomos, incentivando-os “a se responsabilizarem por sua aprendizagem e conscientizando-os sobre os processos cognitivos”. Podemos pressupor, então, que o comportamento autônomo de um aprendiz pode estar diretamente relacionado ao tipo de comportamento que o professor apresenta em sala de aula.

 

Os dados dos alunos

 

Foram coletadas 28 narrativas de aprendizagem de língua inglesa de estudantes do ensino básico. As histórias foram gravadas em formato digital, transcritas e publicadas na Internet, em áudio e texto, no site do projeto AMFALE. Na maioria das narrativas, percebe-se a ausência de autonomia e a dependência do contexto escolar. Vejamos alguns exemplos:

 

(1) Meu nome é XXXX, tenho 17 anos e eu comecei a aprender Inglês porque tem no currículo da escola e tem que aprender mesmo eu não querendo. Eu não faço nada para aprender Inglês porque eu não consigo. Para estudar eu tento ler, mas eu não consigo fazer mais nada. Estudo Inglês só aqui na escola. Eu já tentei fazer cursinho por seis meses, mas parei, eu já comecei a fazer aula particular, mas parei também. Primeiro, porque eu não gosto de Inglês porque eu acho que Inglês não entra na minha cabeça, eu não consigo entender, não consigo falar, não consigo ler. Não consigo.

 

No exemplo (1), a ausência de autonomia pode ser explicada pela imposição da língua pelo sistema educacional. O aprendiz, além de não ter motivação para aprender a língua, acredita ser incapaz de aprender inglês, o que, certamente, tem forte influência negativa em seu processo de aprendizagem. Apesar de ter autonomia econômica para financiar aulas particulares e curso particular, o narrador deixa bem claro que não quer aprender inglês.

Do mesmo modo, (2), (3) e (4) também se vêem como vítimas de escolhas feitas por instituições sociais, conforme previsão de Crabbe (1993). A língua faz parte do currículo e eles não têm como se opor a isso.

 

(2) Estudo inglês para cumprir uma carga escolar necessária e para passar no vestibular. Só vejo o inglês na escola e não costumo estudar muito.

 

(3) Meu nome é XXXX, tenho 18 anos. Eu estudo Inglês há uns seis anos. Comecei a estudar Inglês pela escola; porque faz parte do currículo. Eu estudo, agora eu faço um curso, e estudo mais por livros mesmo.

 (4) Meu nome é XXXX, estudo inglês há uns 05 anos e comecei a estudar inglês pelo colégio. Fiz um curso de inglês por um ano e meio, mas desisti. Atualmente o meu único contato com o inglês é pelo colégio, aqui no COLTEC. Só estudo inglês dentro da sala de aula com a professora, e não gosto de estudar o inglês fora. Geralmente não ouço músicas em inglês e não tenho o hábito de ler em inglês. Só estudo dentro da sala de aula.

 

É interessante observar que até mesmo (3), que faz um curso em uma escola de idiomas, não demonstra qualquer iniciativa que possa ser considerada como índice de autonomia, pois limita seu estudo aos livros didáticos escolhidos pelas escolas. Chama a atenção do leitor o fato de que (4) parece ter a intuição de que ouvir música e ler em inglês podem ajudar na aprendizagem, mas explicita sua recusa em usar tais estratégias.

Nos próximos exemplos, encontramos índices de graus de autonomia. Ao contrário de (4), o aprendiz (5), por exemplo, recorre à leitura e à música para auxiliá-lo na sua aprendizagem.

(5) Eu não estudo muito. Eu faço mais o que o curso exige. Às vezes eu faço uma revisão, faço os exercícios, tento ler alguma coisa e escuto as músicas.

Os exemplos (6) e (7) apresentam relatos de aprendizes com maior grau de autonomia. O aprendiz (6), além da música e da leitura, menciona também televisão, filmes, livros e revistas que lhe proporcionam maior exposição ao idioma. O narrador (7) lança mão dos mesmos recursos e manifesta ter consciência e controle sobre seu processo de aprendizagem.

(6)Meu nome é XXXX, tenho 17 anos, estudo no Colégio Técnico, COLTEC, e eu comecei a estudar inglês porque minha mãe já era professora de inglês, e foi incentivando, e eu comecei no curso que ela dava aula, e mais tarde eu tive aula particular com ela mais com uns colegas meus. O contato que eu tenho com o inglês é a música que eu escuto o tempo todo, toco também, tem a televisão que eu assisto, todos os filmes que eu tenho são legendados também e alguns livros e revistas. Eu costumo ler em inglês também porque eu tenho facilidade em ler e conversar também.

(7) As aulas de conversação no colégio são muito importantes. Fora isso, ler textos, conversar com  estrangeiros, ouvir músicas (cantá-las melhora muito a dicção, não é brincadeira), ver filmes legendados... Para quem pode, assistir à CNN é ótimo. Simplesmente estar diariamente em convívio com a língua.

      Por incrível que pareça, o melhor material foi a TV e o videogame. A gramática todo mundo pode aprender, é muito mais fácil que o português, mas falar de maneira correta é muito mais difícil.

      Procuro estar sempre em contato com a língua. Assim os ouvidos se acostumam e você passa a entender e falar inglês fluentemente.

 

A análise dos dados revela que a maioria dos aprendizes do ensino básico de nosso corpus parece não receber estimulo da escola para realizar atividades autônomas e não demonstra ter consciência do processo de aprendizagem de língua estrangeira. De modo geral, as narrativas desses aprendizes revelam que suas ações ficam muito limitadas à sala de aula, pois, raramente, têm qualquer iniciativa de uso da língua de forma independente. 

            Os poucos aprendizes que apresentam indícios de autonomia recorrem à comunicação de massa (música, TV, Internet) como forma de superar a ausência da produção de sentido em uma comunidade de prática discursiva. Parece que, intuitivamente, os aprendizes percebem que precisam produzir sentido para poder adquirir a língua.

 

As memórias dos professores

 

     Após a análise dos dados dos alunos do ensino básico, resolvemos comparar os resultados com as análises de Paiva (2005b) sobre as memórias de professores do ensino público. Nesse estudo, as narrativas foram agrupadas de acordo com o foco dos narradores em termos de memórias negativas, memórias positivas e memórias recentes. Nas memórias negativas, estão listadas narrativas como (9) e (10).

 

(9) Minha aprendizagem de língua estrangeira na escola regular pode ser considerada como superficial e fragmentada. Até a oitava série estudei em uma escola particular, o que não me livrou do despreparo do professor. As aulas giravam em torno de gramática, principalmente dos verbos. No ensino médio, já na escola pública, as aulas eram em cima da gramática. Havia muita troca de professores, mesmo durante o ano, o que não permitia um seqüenciamento e aprofundamento dos estudos.

 

(10) (...) a cada final de aula, meu entusiasmo era abatido pela displicência do conhecimento em língua inglesa que me era oferecido. Eu queria falar inglês, entender inglês, mas o que “aprendia” era uma lista de verbos e vocabulário. Algumas regras gramaticais que me permitiam construir algumas frases soltas.

 

Em (9), a narradora denuncia o despreparo do professor, o foco exclusivo na forma e não revela nenhuma iniciativa individual para enfrentar a situação adversa para a aprendizagem da língua. Em (10), a narradora realça seu desejo em falar e entender, mas, também, não relata nenhuma atitude autônoma para atingir seu objetivo, que não combina com o da escola.

São vários os exemplos que evidenciam que os professores narradores tiveram experiências bem semelhantes às dos alunos deste estudo. Em suas memórias de quando eram aprendizes, também registram um ensino que privilegiava a forma e sonegava a prática das habilidades orais, bastante almejadas por muitos aprendizes.

Vale lembrar que poucas experiências de uso oral da língua são resgatadas de forma positiva, como no exemplo (11).

 

(11) Tive uma professora que estimulava a aprendizagem nas suas aulas em forma de jogos e provas orais; mas foi só um ano. No ano seguinte voltou o meu tormento. Foi assim até o final do 2º grau.

 

Narrativas como a (11) são exceções, pois, em geral, os aprendizes manifestam o desejo pelo desenvolvimento da oralidade como em (10), mas lamentam que a escola não atenda ao seu desejo. A ausência do desenvolvimento da oralidade é um bom exemplo da imposição do sistema educacional.

Os Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental de língua estrangeira, apesar de reconhecerem que uma ou mais línguas estrangeiras “podem ser entendidas como força libertadora tanto em temos culturais quanto profissionais” (p.39), consideram irrelevante o ensino das habilidades orais e propõe o foco na leitura. Em vez de estimular estratégias para superar os obstáculos que as classes menos privilegiadas enfrentam, explicitam a falta de condições materiais como empecilho para o ensino da língua de uma forma holística. Os PCNs ignoram que apenas a leitura não é libertadora ou suficiente para uma boa qualificação profissional.

A realidade descrita por nossos narradores, no entanto, demonstra que o ensino não foca nem as habilidades orais e nem o letramento mas, sim, a gramática e a tradução em um ritual repetitivo e divorciado de práticas sociais significativas. É, pois, compreensível que no grupo de narrativas dos professores de escolas públicas, agrupadas como memórias recentes, Paiva (2005b) relate que os professores lastimam que seus alunos ignorem a importância do inglês na vida deles. Eles mencionam, também, sentimentos negativos que a disciplina e, por conseqüência, o professor despertam nos alunos. Um narrador chegou a afirmar a respeito de seus alunos: “eles nos odeiam”.

A comparação dos dados demonstra que, tanto nas narrativas do grupo de professores quanto do grupo de alunos do ensino básico, há indícios de que muitos aprendizes são forçados a aprender inglês e, por isso, não se sentem motivados a empreender ações autônomas. Além disso, o ensino que lhes é oferecido não apresenta a língua como meio de comunicação, mas como um amontoado de estruturas sintáticas que não produzem significados relevantes. Esses relatos trazem à tona as conseqüências das imposições que são feitas pelo sistema educacional, pelos professores e, também, da pouca qualificação profissional que não permite ao professor tornar o ensino de língua uma experiência significativa para o aluno.

Conclusões

Autonomia, como definida por Paiva (2005a, p. 88, 89),

 

é um sistema sócio-cognitivo complexo, sujeito a restrições internas e externas. Ela se manifesta em diferentes graus de independência e controle sobre o próprio processo de aprendizagem, envolvendo capacidades, habilidades, atitudes, desejos, tomadas de decisão, escolhas, e avaliação tanto como aprendiz de língua ou como seu usuário, dentro ou fora da sala de aula.

 

Podemos comprovar, em nossos dados, que nossos informantes do ensino básico apresentam restrições internas, tais como falta de motivação e crenças negativas sobre o processo de aprendizagem. Apresentam, também, restrições externas, sobressaindo as imposições do sistema educacional e uma abordagem de ensino de línguas que não lhes incentiva a ter atitudes mais autônomas.

Nas narrativas, tanto dos alunos como dos professores, não há indícios de planejamento, monitoração ou avaliação (DICKINSON, 1977), e eles demonstram não serem livres para fazerem suas escolhas (CRABBE, 1993). Poucos alunos e professores, no corpus analisado, demonstraram, em alguns momentos, serem usuários autônomos da língua ao buscarem filmes e música para praticarem o idioma.

Nossos resultados nos levam a concluir que a questão da autonomia é crucial para o bom desempenho dos aprendizes e que o tema deveria encontrar mais espaço nos projetos de formação de professor em serviço e pré-serviço.

Não poderíamos deixar de ressaltar que as narrativas demonstram, claramente, que os professores menos qualificados são, na maioria dos casos, vítimas da falta de autonomia econômica, o que, de certa forma, os impede de assumir o controle de sua própria formação e de ter acesso aos artefatos culturais, tais como Internet, cinema e TV a cabo, que lhes garantiriam o acesso à língua.

Finalmente, entendemos que desenvolver a autonomia de aprendizes de língua estrangeira não pode se restringir apenas a desenvolver a autonomia psicológica, entendida como controle sobre a própria aprendizagem; deve também e, principalmente, propiciar a autonomia econômica em termos de acesso aos bens culturais veiculadores da língua inglesa.

Referências bibliográficas:

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[1] Citação publicada em http://www.reflexao.com.br/pensamento_todos.php  . Acesso em 20 de maio de 2005.

[2] Pero Vaz de Caminha, em carta enviada a El Rei D. Manuel, comunicando o descobrimento do Brasil.

[4] Disponível em  http://www.indio.org.br/002_Troncos_linguisticos/introducao/cont_intro.htm  . Acesso em 20 de maio de 2005.