PAIVA, V.L.M.O. A LDB e a legislação vigente sobre o ensino e a formação de professor de língua inglesa.In: STEVENS, C.M.T e CUNHA, M.J. Caminhos e Colheitas: ensino e pesquisa na área de inglês no Brasil. Brasília: UnB, 2003. p.53- 84

A LDB e a legislação vigente sobre o ensino e a formação de professor de língua inglesa

Vera Lúcia Menezes de O. e Paiva (UFMG)

Neste capítulo, será apresentada uma retrospectiva histórica da legislação educacional sobre o ensino de línguas estrangeiras no ensino básico e sobre os Cursos de Letras e a conseqüente formação de professores. Além de refletir sobre a situação atual dos cursos de Letras no país e a inserção das graduações em língua inglesa nesses cursos, serão problematizadas as questões mais relevantes registradas na resolução sobre formação de professor. Serão também avaliadas outras mudanças recentes na política educacional e discutidas algumas conseqüências para o ensino de língua inglesa.

 

This chapter presents a historical overview of the Brazilian educational legislation concerning the teaching of English in high schools and also in foreign language teacher-education courses. The present situation of those undergraduate courses will be the main focus of our reflection on the pedagogical principles supported by the educational policies for teacher education in Brazil. Besides that, other aspects of the present legislation will be analyzed in order to point out the consequences for the teaching of English in our country.

 

INTRODUÇÃO

O interesse pelas línguas estrangeiras (LE) se faz presente ao longo do percurso da humanidade. A história demonstra que, desde as antigas civilizações até o mundo globalizado, os homens sentem necessidade de aprender outros idiomas com finalidades bélicas ou pacíficas. As línguas servem de mediadoras para ações políticas e comerciais, além de veicularem o conhecimento científico e a produção cultural.

Segundo Chagas (1967:105), no Brasil, o ensino oficial de línguas estrangeiras teve início em 1837, com a criação do Colégio Pedro II. Diz ele:

As línguas modernas ocuparam então, e pela primeira vez, uma posição análoga à dos idiomas clássicos, se bem que ainda fosse muito clara a preferência que se votava ao latim. Entre aquelas figuravam o francês, o inglês e o alemão de estudo obrigatório, assim como o italiano, facultativo; e entre os últimos apareciam o latim e o grego, ambos obrigatórios.

É ainda Chagas quem relata que, na República, o grego foi retirado, a partir de 1915 e que após a Revolução de 1930, quando se criou o Ministério da Educação e Saúde Pública, foram destinadas ao ensino de francês e inglês 17 horas semanais, 9 para o francês e 8 para o inglês, da primeira à quarta série.

A reforma Capanema, em 1942, mantém o prestígio das línguas estrangeiras, colocando, no ginásio, o francês em ligeira vantagem em relação ao inglês. Quatro anos de aprendizagem para o francês e 3 anos para o inglês. No Colégio, o ensino das duas línguas era feito em dois anos.

Apesar de as duas línguas estarem inseridas no sistema escolar desde o império, a presença da língua francesa em nossa sociedade era muito mais forte em função da influência da França em nossa cultura e na ciência. A preferência pelo francês passou a ser ameaçada com a chegada do cinema falado, na década de 20, quando a língua inglesa começou a penetrar em nossa cultura.

Após a segunda guerra mundial, intensifica-se a dependência econômica e cultural Brasileira em relação aos Estados Unidos e a necessidade ou desejo de se aprender inglês é cada vez maior. Na década de 40, como relata Moura,

o Brasil foi literalmente invadido por missões de boa vontade americanas, compostas de professores universitários, jornalistas, publicitários, artistas, militares, cientistas, diplomatas, empresários, etc. – todos empenhados em estreitar os laços de cooperação com brasileiros – além das múltiplas iniciativas oficiais.

Junto com essas missões e com a produção cultural americana veio a língua inglesa que, aos poucos, foi invadindo o espaço onde predominava soberana a língua francesa. Nas palavras do próprio diretor da Agência de Informação Americana, como nos informa Phillipson, citando Coombs, a missão da agência era impulsionar as realizações da política externa dos Estados Unidos... influenciando as atitudes públicas no exterior para apoiar esses objetivos... através de contatos pessoais, transmissões de rádio, bibliotecas, televisão, exposições, ensino da língua inglesa (grifo meu), e outros.

Falar inglês, nas últimas décadas passou a ser um anseio das populações urbanas e foi cantada até nos versos de Caetano Veloso Você precisa aprender inglês (...)...leia em minha camisa/ Baby, baby, I love you.

Paradoxalmente, o prestígio da língua inglesa aumenta a partir do momento em que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1961 retirava a obrigatoriedade do ensino de LE do ensino médio, atual ensino básico e deixava a cargo dos estados a opção pela sua inclusão nos currículos. Desde então, cresce a opção pelo inglês e, nos últimos 30 anos, observa-se uma explosão de cursos particulares de inglês a partir da intensificação do senso comum de que não se aprende língua estrangeira nas escolas regulares.

Se, por um lado, a pouca carga horária dificulta um ensino eficiente, por outro lado, o conceito de língua como sistema, o excesso de foco na forma, somados a metodologias centradas no professor impedem o desenvolvimento de uma aprendizagem mais autônoma e a criação de um ambiente de aprendizagem que permita ao aluno utilizar estratégias que privilegiem seu próprio estilo de aprendizagem.

Apesar de todos os setores da sociedade reconhecerem a importância do ensino de língua estrangeira, as políticas educacionais nunca lhe asseguraram uma inserção de qualidade em nossas escolas. Em busca dessa qualidade, as classes privilegiadas sempre procuraram garantir a aprendizagem de línguas nas escolas de idiomas ou através de professores particulares, mas os menos privilegiados continuaram à margem desse conhecimento.

A seguir, discutiremos a inserção do ensino de inglês no ensino básico e, logo após, a questão da formação de professores dessa língua.

O ENSINO DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA

O ensino do inglês nas escolas regulares foi, ao longo de sua história, perdendo seu espaço nas grades curriculares. Segundo Leffa, a redução de horas dedicadas ao ensino de LE iniciou-se no Império e continuou ao longo da História.

Durante a república, embora partindo de um ímpeto inicial bastante expressivo, principalmente com a reforma de Fernando Lobo em 1892, nota-se uma redução ainda mais acelerada na carga horária semanal dedicada ao ensino das línguas. Assim, para 76 horas semanais/anuais em 1892, chega-se em 1925, a 29 horas, o que é menos da metade.

A LDB de 1961 e a de 1971 ignoram a importância das línguas estrangeiras ao deixar de incluí-las dentre as disciplinas obrigatórias: português, matemática, geografia, história e ciências. As duas LDBs deixaram a cargo dos Conselhos Estaduais decidir sobre o ensino de línguas.

A lei 5.692 de 11 de agosto de 1971 trouxe, como novidade, a introdução do núcleo comum para os currículos de ensino de 1º e 2º graus em todo o país. Esse núcleo comum, fixado e definido na resolução nº 8 de 1º de dezembro de 1971, estabelecia que o ensino abrangeria as seguintes matérias: comunicação e expressão, estudos sociais e ciências. Em Comunicação e Expressão, o único conteúdo obrigatório é a Língua Portuguesa com a seguinte recomendação no artigo 7º:

Recomenda-se que em Comunicação e Expressão, a título de acréscimo, se inclua uma Língua Estrangeira Moderna, quando tenha o estabelecimento condições para ministrá-la com eficiência.

A redação, além de minimizar a importância da LE, já oferece, de antemão, uma desculpa para que seu ensino não ocorra, pois o condiciona às condições das escolas. Que condições seriam essas? A existência de equipamentos, de professores ou de ambos?

O parecer 853/71 de 12/11/1971 justifica a inserção da língua estrangeira como mera recomendação da seguinte forma:

Não subestimamos a importância crescente que assumem os idiomas no mundo de hoje, que se apequena, mas também não ignoramos a circunstância de que, na maioria de nossas escolas, o seu ensino é feito sem um mínimo de eficácia. Para sublinhar aquela importância, indicamos expressamente a "língua estrangeira moderna" e, para levar em conta esta realidade, fizêmo-la (sic) a título de recomendação, não de obrigatoriedade, e sob as condições de autenticidade que se impõem.

O que seriam essas condições de autenticidade? Seriam oportunidades de interação com falantes da língua alvo, uso de material autêntico ou um professor que dominasse a língua que ensina? O redator não qualifica o termo e não se sabe o que ele quis dizer. É, também, interessante observar como o legislador, sem se apoiar em nenhuma pesquisa, conclui que o ensino de línguas estrangeiras é ineficaz na maioria das escolas, deixando no não dito a pressuposição de que as outras disciplinas atingem seus objetivos satisfatoriamente. Seria a escola a única responsável pela ineficácia do ensino ou a legislação também teria sua parcela de culpa?

Leffa, por exemplo, avalia que, em 1971, a redução de um ano no total da escolaridade de nossos jovens, teve um reflexo muito negativo no ensino de línguas. Diz ele:

A redução de um ano de escolaridade e a necessidade de se introduzir a habilitação profissional provocaram uma redução drástica nas horas de ensino de língua estrangeira, agravada ainda por um parecer posterior do Conselho Federal de que a língua estrangeira seria "dada por acréscimo" dentro das condições de cada estabelecimento. Muitas escolas tiraram a língua estrangeira do 1o. grau, e no segundo grau, não ofereciam mais do que uma hora por semana, às vezes durante apenas um ano. Inúmeros alunos, principalmente do supletivo, passaram pelo 1o. e 2o. graus, sem nunca terem visto uma língua estrangeira.

A não obrigatoriedade do Ensino de LE trouxe como conseqüência a ausência de uma política nacional de ensino de línguas estrangeiras para todo o país; a diminuição drástica da carga horária, chegando a apenas uma aula por semana em várias instituições; e um status inferior ao das disciplinas obrigatórias, pois, em alguns estados, as línguas estrangeiras perdem o "poder" de reprovar.

Em 1976, a resolução nº 58 de 1º de dezembro resgata, parcialmente, o prestígio de línguas estrangeiras, tornando o ensino de LE obrigatório para o ensino de 2º grau. Diz o artigo 1º:

O estudo de Língua Estrangeira Moderna passa a fazer parte do núcleo comum, com obrigatoriedade para o ensino de 2º grau, recomendando-se a sua inclusão nos currículos de 1º grau onde as condições o indiquem e permitam.

Percebe-se no texto legal, no entanto, que se mantém o mesmo espírito do parecer 853/71, condicionando a inserção do ensino de língua estrangeira no 1º grau, hoje ensino fundamental, às condições que indiquem e permitam esse ensino.

Costa alega que

o fato de os legisladores federais deixarem à língua estrangeira apenas o caráter de "recomendação" de acréscimo ao currículo de 1º grau contribui de forma decisiva para que, como nenhum outro componente, a sua inclusão fique sujeita a casuísmos e conveniências do momento.

Para comprovar seu argumento, Costa apresenta o exemplo do Estado de São Paulo que só incluiu a LE para aproveitar os recursos humanos já existentes em 1980 e não por defender o ensino de idiomas. Em 1985, o Conselho Estadual de Educação daquele estado retirou seu status de "disciplina" transformando-a em "atividade".

Cada vez mais vemos ameaçada a democracia educacional, criando-se um fosso entre a educação das elites e a das classes populares, pois as primeiras nunca se privaram da aprendizagem de LE, nas escolas particulares ou nos institutos de idiomas. Parte da academia, especialmente os professores envolvidos no projeto de Inglês Instrumental coordenado pela PUC-SP, passa a defender que nas escolas públicas o ensino deve ser instrumental, com o foco exclusivo na Leitura. Essa idéia ganha força e o projeto, primeiramente destinado a apoiar o ensino de inglês para universitários com necessidades urgentes de leitura, passa a fazer parte das Escolas Técnicas Federais e de muitas outras instituições públicas e particulares do país. Assim, para as classes trabalhadoras a língua inglesa deveria ter apenas um objetivo instrumental, reforçando o espírito elitista da cultura educacional "que sempre permeou o acesso ao conhecimento de línguas estrangeiras", conforme ressalta Silveira.

No final de novembro de 1996, a Associação de Lingüística Aplicada do Brasil (ALAB) promove o primeiro Encontro Nacional de Política de Ensino de Línguas (I ENPLE) e, ao final do evento, é divulgada a Carta de Florianópolis que propõe um plano emergencial para o ensino de línguas no país. A primeira afirmação do documento enfatiza que todo brasileiro tem direito à plena cidadania, a qual, no mundo globalizado e poliglota de hoje, inclui a aprendizagem de línguas estrangeiras, e após outros considerandos, propõe, entre outros itens, que seja elaborado um plano emergencial de ação para garantir ao aluno o acesso ao estudo de línguas estrangeiras, proporcionado através de um ensino eficiente. O documento defende, explicitamente, que a aprendizagem de línguas não visa apenas a objetivos instrumentais, mas faz parte da formação integral do aluno.

Um mês depois, em dezembro de 1996, enquanto o documento estava sendo divulgado e enviado a diversas autoridades educacionais do país, é promulgada a nova LDB, que torna o ensino de LE obrigatório a partir da quinta série do ensino fundamental. O Art. 26, § 5º dispõe que

Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.

Quanto ao ensino médio, o art. 36, inciso III estabelece que

será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das possibilidades da instituição.

Parecia que, finalmente, o ensino de línguas estrangeiras via sua importância legitimada ao ser acolhido pela legislação educacional. No entanto, como veremos a seguir, algumas ações governamentais e algumas brechas na LDB demonstram que o ensino de idiomas ainda é visto como algo pouco relevante ou descolado dos projetos pedagógicos.

A primeira demonstração da pouca legitimidade do ensino de idiomas está registrada nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira (PCNs) para o ensino fundamental publicados pelo MEC em 1998. O documento minimiza a importância do ensino das habilidades orais, afirmando que "somente uma pequena parcela da população tem a oportunidade de usar línguas estrangeiras como instrumento de comunicação oral". O texto reproduz os preconceitos contra as classes populares registrados pela música popular já em 1934, quando Carmen Miranda gravou de Assis Valente a canção Alô Boy, que dizia: Alô boy, deixa essa mania do inglês. Fica tão feio pra você moreno frajola, que nunca freqüentou os bancos da escola. Ao argumentar a favor de se privilegiar o ensino de leitura em detrimento das outras habilidades, o documento afirma, na página 20:

Portanto, a leitura atende, por um lado, às necessidades da educação formal, e, por outro, é a habilidade que o aluno pode usar em seu próprio contexto social imediato. (...)

Deve-se considerar também o fato de que as condições na sala de aula da maioria das escolas brasileiras (carga horária reduzida, classes superlotadas, pouco domínio das habilidades orais por parte da maioria dos professores, material didático reduzido ao giz e livro didático etc.) podem inviabilizar o ensino das quatro habilidades comunicativas. Assim, o foco na leitura pode ser justificado em termos da função social das LEs no país e também em termos dos objetivos realizáveis tendo em vista condições existentes.

É surrealista que um documento do próprio MEC reafirme a má condição do ensino no país e que se acomode a essa situação adversa em vez de propor políticas de qualificação docente e de melhoria do ensino. O texto dos PCNs, além de negar a importância das habilidades orais e da escrita e ignorar as grandes modificações advindas da era da informática, reproduz o mesmo discurso do parecer 853/71 de 12/11/1971. Justificando a opção pela leitura através de uma generalização sobre a ineficácia do sistema educacional, como se as condições adversas de muitas de nossas escolas fossem motivo suficiente para negar a todos o direito à educação que lhes é garantido pela Constituição Federal no artigo 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Ora, estar preparado para o exercício da cidadania e ter qualificação para o trabalho deveria incluir o conhecimento de uma língua estrangeira não só para a leitura de documentos como também para a interação com falantes na modalidade oral ou escrita em função da forte presença da Internet nas diversas instituições.

O texto dos PCNS, em vez de enfatizar a necessidade de se criarem condições para que a obrigatoriedade do ensino de LE na LDB de 1996 e a conseqüente necessidade de mudança nas condições de seu ensino alterem o contexto adverso gerado pela legislação anterior, fornece justificativas para a não realização do enunciado.

Nos PCNs, a inclusão de habilidades orais no currículo é condicionada à possibilidade de uso efetivo da língua pelo aprendiz, como se isso fosse totalmente previsível de antemão. Na Página 20, reforçando a discriminação contra as classes populares, os autores argumentam que

No Brasil, tomando-se como exceção o caso do espanhol, principalmente nos contextos de fronteiras nacionais, e o de algumas línguas nos espaços das comunidades de imigrantes (polonês, alemão, italiano etc) e de grupos nativos, somente uma pequena parcela da população tem a oportunidade de usar línguas estrangeiras como instrumento de comunicação oral, dentro ou fora do país. Mesmo nos grandes centros, o número de pessoas que utilizam o conhecimento das habilidades orais de uma língua estrangeira em situação de trabalho é relativamente pequeno.

Desse modo, considerar o desenvolvimento de habilidades orais como central no ensino de Língua Estrangeira no Brasil não leva em conta o critério da relevância social para a aprendizagem.

Estranha-se que esse argumento pragmático só apareça nos PCNs de LE e que não se questionem os demais conteúdos de outras áreas, pois o mesmo raciocínio poderia ser feito para a aprendizagem de grande parte do conteúdo de outras disciplinas, utilizando o argumento de "utilidade imediata" como condição para a seleção de saberes. Se essa fosse a condição necessária para a aquisição de qualquer conhecimento, poderíamos usar os mesmos argumentos para derrubar o foco na leitura. Qual é a relevância da leitura em língua estrangeira fora dos muros da academia? Provavelmente bem menor do que a habilidade de compreensão oral, tendo em vista o contato de nossos jovens com a música e o cinema em língua inglesa. Isto não significa, no entanto, que a leitura não deva ser ensinada ou que o foco deveria ser só na compreensão oral.

O argumento de que o conhecimento das habilidades orais de uma língua estrangeira em situação de trabalho é relativamente pequeno é um tanto duvidoso em um contexto globalizado como o nosso. Ao abrir os jornais, veremos, diariamente, nos classificados, a procura por profissionais que falem a língua. Nunca vi um anúncio que procure alguém que leia em inglês, mas que fale inglês, o que pressupõe conhecer essa língua como língua viva e não como uma língua morta com seus textos escritos.

Ao utilizar o argumento da fronteira e do regionalismo, os PCNs visualizam nossa população como uma soma de conjuntos estáticos de pessoas que não se deslocam pelos espaços geográficos. Ignoram, também, que as línguas não são mais produtos territorizados, e, no caso do inglês, como ressalta Milton Santos o espaço dos pontos, ou seja, o não-espaço é o espaço geográfico desse novo império lingüístico.

O documento, portanto, em vez de impulsionar mudanças na realidade para a implementação de um ensino de qualidade, apresenta uma justificativa conformista e determinista ao propor um ensino de LE recortado pela habilidade de leitura, desconhecendo, diferentemente do resto do mundo, a relevância da oralidade. Além disso, passa ao leitor a impressão de que seus autores não estão convencidos da importância de se ensinarem línguas estrangeiras no país.

Os PCNS negam ao aprendiz o direito de ser sujeito de sua própria história, pois como diz Augusto "antecipam qual o uso que o aprendiz fará da língua estrangeira em seu contexto social" e acrescento, ignoram a possibilidade de ascensão social através da educação.

Augusto diz que

é preciso haver uma desconstrução da distorção implícita no discurso do legislador que assume e reconhece o lugar marginal, o contexto desfavorável no qual está inserido o ensino de língua estrangeira, mas que, ao invés de usar os instrumentos necessários para reverter esta situação, cria instrumentos que legitimam e perpetuam um sistema perverso no qual de acordo com Simone de Beauvoir(1963:34, apud Freire, 1987:60) "os opressores tentam transformar a mentalidade dos oprimidos, não a situação que os oprime.

Além dos PCNs para o ensino fundamental, temos os PCNs para o ensino médio e para a educação de jovens e adultos. O MEC, ao encomendar os textos dos PCNs para profissionais com crenças e filiações ideológicas diferentes, acaba por oferecer à comunidade uma política de ensino de LE contraditória.

Os PCNs para o ensino médio advogam que a meta para o ensino de LE no Ensino Médio é a comunicação oral e escrita que o documento entende como uma ferramenta imprescindível no mundo moderno, com vistas à formação profissional, acadêmica ou pessoal. As competências esperadas do aprendiz almejam a língua em todo o seu potencial sem privilegiar apenas uma habilidade, como podemos ver, a seguir, no detalhamento das três competências esperadas do aprendiz:

Representação e comunicação

• Escolher o registro adequado à situação na qual se processa a comunicação e o vocábulo que melhor reflita a idéia que pretende comunicar.

• Utilizar os mecanismos de coerências e coesão na produção oral e/ou escrita.

• Utilizar as estratégias verbais e não-verbais para compensar as falhas, favorecer a efetiva comunicação e alcançar o efeito pretendido em situações de produção e leitura.

• Conhecer e usar as línguas estrangeiras modernas como instrumento de acesso a informações a outras culturas e grupos sociais.

 

Investigação e compreensão

• Compreender de que forma determinada expressão pode ser interpretada em razão de aspectos sociais e/ou culturais.

• Analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando textos/contextos mediante a natureza, função, organização, estrutura, de acordo com as condições de produção/recepção (intenção, época, local, interlocutores participantes da criação e propagação de idéias e escolhas, tecnologias disponíveis).

Contextualização sócio-cultural

• Saber distinguir as variantes lingüísticas.

• Compreender em que medida os enunciados refletem a forma de ser, pensar, agir e sentir de quem os produz.

Os PCNs para jovens e adultos, no primeiro parágrafo do documento, afirma que para exercer a cidadania, é necessário comunicar-se, compreender, saber buscar informações, interpretá-las e argumentar, o que implica o desenvolvimento de todas as habilidades lingüísticas. No parágrafo seguinte, o texto prossegue em sua argumentação reiterando a importância do ensino de LE como um direito do cidadão:

A aprendizagem de línguas estrangeiras, como direito básico de todas as pessoas e uma resposta a necessidades individuais e sociais do homem contemporâneo, não só côo inserção no mundo do trabalho, mas principalmente como forma de promover a participação social, tem papel fundamental na formação de jovens e adultos. A língua permite o acesso a uma ampla rede de comunicação e à grade quantidade de informações presentes na sociedade contemporânea.

Ainda na primeira página, o documento ressalta a importância do ensino de LE na formação global de jovens e adultos, pois lhes dará a oportunidade de acessar o conhecimento nas diversas áreas da ciência, nos meios de comunicação, nas relações entre as pessoas (grifo meu) de várias nacionalidades, no uso de tecnologias. (...) A aprendizagem de LE é, portanto, necessária como instrumento de compreensão do mundo, de inclusão social e de valorização pessoal. Em nenhum momento, esse documento sinaliza que o foco deve ser na leitura. Ao contrário, afirma, na página 68, que o ensino de LE

desenvolve o interesse pela leitura e pela escrita, ao propor textos compatíveis com os interesses e as necessidades dos alunos – artigos de jornais e revistas, textos educativos e científicos e livros variados compõem a base para uma percepção mais crítica da realidade, ao mesmo tempo que servem ao insumo para aos alunos elaborarem novos textos.

Na seqüência, o documento enumera várias situações em que a LE será fundamental e entre elas estão exemplos que demandarão as diversas habilidades, tais como consulta a classificados, redação de currículos, leitura de manuais da área, entrevistas para emprego, etc., como contribuição profissional, e, como alternativas de lazer, leitura de livros, jornais e revistas, compreender melhor filmes, telejornais, documentários, entrevistas, novelas, etc.

Podemos perceber, no exame desses documentos, as contradições do poder público e da própria academia, a quem o governo encomenda os textos, que ora reconhecem e enfatizam a importância do ensino de línguas e ora criam barreiras para seu ensino efetivo, abrindo brechas na legislação (ex. a segunda língua será ensinada dependendo das condições) ou contribuem para a manutenção do status quo (ex. o foco na leitura em função das condições adversas das escolas públicas).

A política nacional para o ensino de LE se limita à aprovação da legislação e à publicação dos PCNs, pois esses textos não são acompanhados de ações efetivas para valorizar o ensino de línguas. A ausência de preocupação com o ensino de LE é refletida ainda em outras decisões políticas, tais como a não distribuição de livros didáticos para o ensino de LE pelo MEC, e a exclusão da avaliação desse conteúdo nos exames nacionais criados após a LDB de 1996.

O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) não inclui, entre as competências a serem avaliadas, a língua estrangeira. A LDB introduz a obrigatoriedade do ensino de LE, mas nas políticas educacionais, o espírito que as conduz é, ainda, a da LDB de 1961 que coloca como obrigatórias apenas as disciplinas: português, matemática, geografia, história e ciências. Ao examinar as cinco competências a serem avaliadas pelo ENEM, percebemos claramente a presença desses conteúdos:

Dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica.
II. Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas.
III. Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema.
IV. Relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente.
V. Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.
(veja maiores detalhes na homepage do INEP)

O Exame nacional de cursos (ENC) , mais conhecido como provão, também não inclui as línguas estrangeiras na avaliação dos alunos da área de Letras. Até mesmo a avaliação das condições de oferta dos Cursos de Letras, realizada em 1999/2000, levou em conta somente a habilitação em Português. As licenciaturas em línguas estrangeiras só foram avaliadas quando inseridas na modalidade de licenciatura dupla. Essa foi mais uma sinalização para a pouca importância que se tem dado ao ensino de LE e à formação do professor de LE.

Um outro problema que o ensino de LE vem enfrentando é a terceirização do ensino de línguas respaldado na interpretação que tem sido dada ao inciso IV do artigo 24 da LDB que diz:

poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares;

Alguns colégios e até mesmo faculdades têm delegado a escolas de idiomas a competência para ensinar, aos seus alunos, a língua estrangeira, um dos componentes curriculares de seu projeto pedagógico. Essa terceirização faz com que o ensino de LE fique descolado do projeto educacional, impedindo-se um trabalho integrado com os demais conteúdos.

Preocupados com a ameaça de terceirização e outros problemas relacionados ao ensino de LE, os membros da ALAB, reunidos em Pelotas em setembro de 2000, lançaram seu segundo documento – a Carta de Pelotas – em que reivindicam que as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação fiscalizem e coíbam a terceirização do ensino de línguas estrangeiras nas escolas públicas e particulares de ensino regular.

Acreditando, como Silveira, que a aprendizagem de línguas estrangeiras é um instrumento de grande valia na interação interpessoal e na circulação de informação entre os povos, avalio que ainda há muito a avançar na política educacional brasileira nesse sentido.

Vista ora como acréscimo, ora como opção, ora como desnecessária, a língua estrangeira também é maltratada nos cursos de Letras e, especialmente, na parte específica de formação de professor.

A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

Para falar da formação do professor de língua estrangeira, seria interessante fazer um histórico sobre o nascimento do currículo mínimo para os Cursos de Letras que vigorou por 34 anos e que, até hoje, ainda exerce influência nesses cursos.

Em 19 de outubro de 1962, foi aprovado pelo então Conselho Federal de Educação o parecer n º 283 de Valnir Chagas, propondo o currículo mínimo para os Cursos de Letras. O documento abria seu texto com a seguinte observação: A presente estrutura de nossos cursos superiores de Letras dá a impressão de algo que se planejou para não ser executado. A referência se justificava em função da divisão do curso de Letras em conjuntos de línguas nos quais o grupo das Línguas Neolatinas era um exemplo extremo, pois previa a aprendizagem de cinco línguas com suas respectivas literaturas.

Apesar da substituição dos conjuntos de línguas por apenas uma língua estrangeira, a afirmação de Valnir Chagas continua válida, pois, até hoje, é dada pouca atenção ao ensino de LE e à formação dos professores. Embora haja uma oferta, cada vez maior, de cursos de licenciatura em espanhol, a maioria dos cursos de Letras do país oferece, quase sempre na modalidade de licenciatura dupla, apenas a língua inglesa. Escorados no antigo currículo mínimo, os projetos pedagógicos da maioria das Instituições de Ensino Superior reservam um número insuficiente de horas para seu ensino - cerca de 360 horas de língua inglesa e 120 de literaturas inglesa e americana. As Universidades Federais, por não visarem ao lucro, ofertam outras línguas (francês, italiano, alemão, russo, japonês, etc.) e uma carga didática um pouco maior, mas, ainda assim, insuficiente para uma formação adequada do professor de LE. Parafraseando Chagas, parece que continuamos com algo que se planejou para não ser executado.

É importante também ressaltar que, na década de 60, havia uma grande demanda por professores de língua portuguesa em função do aumento de sua carga didática nos currículos escolares. Esse fato gerou uma proposta, em nome da "autenticidade" e da "flexibilidade" (palavras do relator), de uma nova estrutura para os cursos de Letras - o diploma duplo.

Chagas considerava inconcebível que um professor de língua estrangeira não o fosse também de língua portuguesa. Em seu parecer ressaltava a total inconveniência de que seja alguém autorizado a lecionar língua estrangeira sem o completo domínio do idioma vernáculo e falava de uma nova concepção de formação de professor de LE em que todo professor de língua estrangeira o seja também de Português. Daí não sendo lícito inferir que a recíproca sempre deve ou possa ocorrer.

É interessante observar que Valnir Chagas era professor de inglês e que não está sozinho nessa crença de que não é saudável ser professor de LE sem o ser de língua portuguesa. Moita Lopes confessa seu receio de que os cursos de Licenciatura única aumentem a colaboração com uma postura colonizada na formação do professor, com sua conseqüente alienação...

A resolução que fixava os mínimos de conteúdo e duração do curso de Letras (licenciatura plena) incorporou o parecer 283 e aprovou, também em 10 de outubro de 1962, uma proposta de currículo mínimo de Letras formado por uma parte comum e outra diversificada em duas possibilidades de habilitação – Português ou Português e uma Língua Estrangeira clássica ou moderna. A composição do currículo mínimo ficou da seguinte forma:

Art. 1º . - O currículo mínimo dos cursos que habilitam à licenciatura em Letras compreende 8 (oito) matérias escolhidas na forma abaixo indicada, além das matérias pedagógicas fixadas em Resolução Especial:

Língua Portuguesa

Literatura Portuguesa

Literatura Brasileira

Língua Latina

Lingüística

8. Três matérias escolhidas dentre as seguintes

Cultura Brasileira

Teoria da Literatura

Uma língua estrangeira moderna

Literatura correspondente à língua escolhida na forma da letra anterior

Literatura Latina

Filologia Românica

Língua Grega

Literatura Grega

A escolha dos itens c e g importa em obrigatoriedade das matérias constantes das letras d e h.

 

Quatro anos depois, em 15 de abril de 1966, o mesmo relator examinou um estudo sobre licenciatura única em LE, encaminhado pela USP, e emitiu parecer favorável à proposta de uma terceira possibilidade de habilitação - Língua Estrangeira e respectiva literatura. São Paulo contava, à época, com 18 cursos de Letras, e a USP considerava que havia cursos suficientes para atender à demanda do mercado para professores de Português e solicitava autorização para diploma único em língua estrangeira como proposta experimental circunscrita àquela universidade. O relator, no entanto, teve a prudência de se pronunciar a favor dessa terceira opção para todo o território nacional, acreditando que o mercado faria com que se prevalecesse a formação de professores de Língua Portuguesa o que de fato aconteceu.

O pedido da USP, talvez movido pela prudência, não sugeria alteração do currículo mínimo; aliás, afirmava não estar propondo tal alteração, e o currículo mínimo, que foi claramente idealizado para o bacharelado de língua portuguesa, permaneceu inalterado.

Em 17 de maio do mesmo ano, a portaria nº 155 do MEC lista as áreas para a Licenciatura em Letras. Para a licenciatura completa, as modalidades possíveis eram: Português e Literaturas de Língua Portuguesa; uma língua estrangeira clássica ou moderna com a respectiva literatura (grifo meu); Português e uma língua estrangeira clássica ou moderna com as respectivas literaturas. Para a licenciatura de 1º ciclo, excluiu-se a licenciatura dupla que ficou restrita à formação de professores de Latim, os únicos cursos que poderiam também ter a licenciatura em Português. As modalidades previstas para esse tipo de formação eram Português e Literaturas de Língua Portuguesa; uma língua estrangeira moderna com a respectiva literatura; Língua e Literatura Latina; Português e Latim com as respectivas literaturas.

Quanto à formação pedagógica, a resolução nº 9, de 10 de outubro de 1969, determinava o seguinte:

Art. 1º - Os currículos mínimos dos cursos que habilitem ao exercício do magistério, em escolas de 2º grau, abrangerão as matérias de conteúdo fixadas em cada caso e as seguintes matérias pedagógicas:

a) Psicologia da Educação (focalizando pelo menos os aspectos da Adolescência e Aprendizagem):

b) Didática;

c) Estrutura e Funcionamento de Ensino de 2º Grau.

Art. 2º - Será obrigatória a Prática de Ensino das matérias que sejam objeto de habilitação profissional, sob forma de estágio supervisionado e desenvolver-se em situação real, de preferência em escola da comunidade.

Art. 3º - A formação pedagógica prescrita nos artigos anteriores será ministrada em, pelo menos, um oitavo (1/8) das horas de trabalho fixadas, como duração mínima, para cada curso de licenciatura.

Art. 4º - As disposições dessa resolução terão vigência a partir do ano letivo de 1970, revogadas as disposições em contrário.

Como podemos verificar no texto acima, nenhuma referência explícita é feita à didática especial de LE, e, até hoje, há um número significativo de Faculdades de Letras no país, cuja formação do professor de LE fica a cargo de um pedagogo sem formação em LE e sem familiaridade com conceitos da lingüística e da lingüística aplicada, fundamentais para se refletir sobre o ensino de línguas.

Esse fosso que se estabeleceu entre disciplinas de conteúdo e disciplinas pedagógicas é um dos fatores que geram a precariedade da formação de professores de língua nos cursos de Letras no país.

A tentativa de se dividir a didática em geral e específica separa o indivisível como se métodos e técnicas pudessem ser estudados sem conexão com o planejamento e a avaliação e sem problematizar o que é língua, o que é língua estrangeira e como se aprende ou adquire essa língua.

Outras disciplinas, como a psicologia ou mesmo a sociologia da educação, acabam desconhecendo as especificidades do aprendiz de LE e do contexto histórico-social em que essa língua se insere.

A análise dos dados da última avaliação das condições de oferta e dos processos de autorização e de reconhecimento de cursos de Letras demonstrou que os conteúdos de didática, de prática de ensino e orientação de estágio não incluem as reflexões teóricas e as atividades práticas necessárias para a formação do docente em cada área.

A Resolução 1/72 de 17 de janeiro de 1972 estabeleceu que as licenciaturas plenas teriam a duração mínima de 2200 horas de atividades com integralização a fazer-se no mínimo de três e no máximo de sete anos letivos. As licenciaturas de 1º grau teriam a duração mínima de 1200 horas de atividades com integralização a fazer-se no mínimo de um ano e meio e no máximo de quatro anos letivos. Poderíamos inferir que nas licenciaturas duplas, pelo menos 1000 horas seriam destinadas à língua estrangeira, mas isto não ocorre. A legislação nunca se preocupou com a formação do professor em LE e nunca definiu a porcentagem de horas que deveria ser destinada para essa formação.

As últimas mudanças na legislação educacional não tiveram o impacto necessário na área. O contexto em que estão inseridos, até hoje, os nossos cursos de Letras não teve mudança palpável nos últimos 30 anos.

A maioria dos cursos do país constitui-se em forma de diploma duplo e privilegia-se, naturalmente, o ensino de Língua Portuguesa. A carga horária de língua estrangeira não chega, na maioria dos cursos, à metade do número de horas exigidas no antigo currículo mínimo.

A presença da Língua Portuguesa nos currículos, geralmente, parte do pressuposto equivocado de que aos 18 anos, em média, os nossos alunos são ainda incompetentes na língua materna. O parecer que embasa o currículo mínimo de 1962 aponta para a total inconveniência de que seja alguém autorizado a lecionar língua estrangeira sem o completo domínio do idioma vernáculo.

Não estou, de forma alguma, ignorando que muitos de nossos alunos apresentam dificuldade com a variedade culta do português, mas isso poderia ser resolvido através de um currículo mais flexível e centrado nas necessidades de seus alunos e não submetendo todos ao mesmo tratamento. Mesmo nos cursos de diploma único em língua estrangeira, o que vemos hoje são, normalmente, três ou quatro semestres obrigatórios de língua portuguesa cujo conteúdo varia entre dois extremos: treinamento em análise sintática e crítica à gramática tradicional, com pouco espaço para a produção textual e o letramento acadêmico. Assim, sob o pretexto da supremacia do idioma materno, não se permite um ensino de qualidade de LE, alimentando o círculo vicioso: os Cursos de Letras não formam bons professores, esses professores não têm a competência necessária para ensinar a língua, o ensino básico não oferece um ensino de LE de qualidade e seus egressos procuram o curso de Letras para se transformarem em professores no prazo de três anos.

Predominam no país cursos de Letras em Português e Inglês com crescente ascensão de Português e Espanhol. Muitos desses cursos são ministrados em 3 anos e recebem alunos de escolas do ensino básico que também não investiram em um ensino de LE de qualidade. A grande maioria dos projetos pedagógicos de Licenciaturas em Letras que passaram pela Comissão de Especialistas de Ensino de Letras na SESu, nos últimos dois anos, seja para autorização ou reconhecimento, devotam ao ensino de inglês ou espanhol, cerca de 360 horas, ou no máximo 480 horas de ensino da língua estrangeira com o acréscimo de 60 a 120 horas de literatura inglesa e norte-americana. A parte do currículo dedicada à formação do professor é praticamente inexistente e, em muitos casos, é de competência de departamentos de educação, que não produzem reflexões sobre o ensino de línguas. As aulas de literatura estrangeira são dadas, geralmente, em português e as turmas chegam a ter 50, 70 e até 90 alunos, inviabilizando a oferta de um ambiente adequado à prática do idioma. Como resultado, o sistema educacional brasileiro coloca no mercado de trabalho professores despreparados. Muitos recorrem aos cursos de especialização em busca de uma regraduação que, provavelmente, não será encontrada.

Uma possível solução seria o fim das licenciaturas duplas, mas isso não é bem visto pelos próprios professores de LE das Instituições Privadas que receiam ter seus cursos fechados em função de uma maior demanda para os cursos de português. Outra saída seria uma regulamentação dos cursos de licenciatura dupla em que se definisse com muita clareza os dois projetos – formação de professor de língua portuguesa e formação de professor de língua inglesa – e o núcleo comum aos dois projetos. É necessário que seja fixado um percentual de horas mínimas a serem dedicadas ao ensino de língua estrangeiras, que, no meu entender, não deveria ser inferior a 1400 horas. Não se pode ignorar que o aluno já adquiriu o português ao se decidir pelo curso de Letras e que, com raras exceções, o mesmo acontecerá com a língua estrangeira. Competirá aos cursos de Letras, para evitar sua elitização, oferecer aos seus alunos não apenas as atividades e conteúdos necessários para a formação do professor de LE, mas também atividades e conteúdos para a aquisição daquele idioma.

A formação de professor não é um problema apenas dos cursos de Letras. Em todas as áreas predomina o que tem sido chamado de formação 3+1, ou seja, três anos de bacharelado e um ano de formação pedagógica, comumente, descontextualizada e feita em departamentos de educação de competência duvidosa em relação às especificidades de cada área.

O MEC, preocupado com a qualidade das licenciaturas, instituiu uma comissão para discutir a formação do professor. Após várias audiências públicas e calorosos debates entre as várias comissões de especialistas da SESu-MEC, o Conselho Nacional de Educação aprovou, em 18 de fevereiro de 2002, a resolução N º 1, que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena e, no dia seguinte, 19 de fevereiro de 2002, é aprovada a Resolução Nº 2, que institui a duração e a carga horária desses cursos.

A carga horária das licenciaturas passa a ser de 2800 horas, sendo 400 horas de prática; 400 de estágio curricular supervisionado; 1800 horas de aulas para os conteúdos curriculares de natureza científico-cultural; e 200 horas para outras formas de atividades acadêmico-científico-culturais.

No mês seguinte, 13 de março de 2002, é aprovada a Resolução da Câmara de Ensino Superior Nº 18, que estabelece que as Diretrizes Curriculares para os cursos de Letras, com base nos Pareceres CNE/CES 492/2001 e 1363/2001. Nenhuma menção é feita às licenciaturas duplas em nenhum dos textos legais.

O currículo mínimo de 1962 dava às IES a opção de escolher algumas das disciplinas que deveriam compor o currículo em conjunto com as obrigatórias, definidas em lei. As novas diretrizes para os cursos de Letras, reconhecendo a impossibilidade de se contemplar em um currículo todo o conhecimento da área, estabelece que os cursos de graduação deverão ter estruturas flexíveis que:

facultem ao profissional a ser formado opções de conhecimento e de atuação no mercado de trabalho;

criem oportunidade para o desenvolvimento de habilidades necessárias para se atingir a competência desejada no desempenho profissional;

dêem prioridade à abordagem pedagógica centrada no desenvolvimento da autonomia do aluno;

promovam articulação constante entre ensino, pesquisa e extensão (grifo meu), além de articulação direta com a pós-graduação;

propiciem o exercício da autonomia universitária, ficando a cargo da Instituição de Ensino Superior definições como perfil profissional, carga horária, atividades curriculares básicas, complementares e de estágio.

 

O currículo, nas novas diretrizes, não é mais entendido como a soma de disciplinas distribuídas em uma grade curricular. Apesar de não descartar as disciplinas convencionais, o novo texto legal introduz o conceito de atividade curricular, abrindo a possibilidade para que o graduando possa completar seus créditos com atividades, tais como iniciação científica, atividades de extensão, participação em eventos, etc. A articulação entre ensino, pesquisa e extensão é condição necessária para a implementação de um currículo flexível.

Entre as competências e habilidades previstas, as novas diretrizes mencionam explicitamente o domínio da língua, a preparação profissional atualizada, o domínio dos conteúdos básicos que são objetos dos processos de ensino e aprendizagem no ensino básico, e o domínio dos métodos e técnicas pedagógicas.

Uma recomendação significativa para a formação do professor de LE é a integração dos conteúdos básicos e os "caracterizadores da formação profissional em Letras". Isso implica deixar de ver o curso como objeto dividido entre dois departamentos com responsabilidades bem definidas – conteúdo de um lado e disciplinas pedagógicas de outro. Não se justifica mais atribuir à formação de professores a dois grupos distintos: o que domina o conteúdo, mas não reflete como ensiná-lo e o que ensina a ensinar um conteúdo que não domina.

No novo instrumento de avaliação do Curso de Letras – Língua Estrangeira, recém divulgado pelo INEP, um dos aspectos a ser avaliado é o número de docentes envolvidos com a orientação de estágio. Para se ter o conceito "muito bom", que o curso deverá ter 75% de seus docentes envolvidos com o estágio, para o conceito bom, exige-se um mínimo de 45%. Isto indica que a orientação de estágio concentrada na mão de um único professor, geralmente um pedagogo sem formação na área específica e orientando estagiários de diversas, áreas está com os dias contados.

As diretrizes curriculares para os cursos de Letras estabelecem que no caso das licenciaturas, deverão ser incluídos os conteúdos definidos para a educação básica, as didáticas próprias de cada conteúdo e as pesquisas que as embasam. Se as diretrizes forem respeitadas, os projetos pedagógicos terão que contemplar as pesquisas em ensino e aquisição de LE e, conseqüentemente, ampliar a atuação de lingüistas aplicados nesses cursos, ou de outros profissionais que, apesar de rejeitarem o rótulo de "lingüistas aplicados", se dedicam aos estudos sobre o ensino de língua materna e estrangeira. A preocupação com a pesquisa é retomada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, cujo texto legal, deve, obrigatoriamente, estabelecer um diálogo com as Diretrizes do Curso de Letras. O Inciso III do Art. 3º estabelece como um dos princípios norteadores para o preparo profissional específico a pesquisa, com foco no processo de ensino e de aprendizagem, uma vez que ensinar requer, tanto dispor de conhecimentos como mobilizá-los para a ação, como compreender o processo de construção do conhecimento, e no inciso V do Art. 6º, lista entre as competências a serem consideradas na construção do projeto pedagógico, aquelas referentes ao conhecimento de processos de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento da prática pedagógica.

Chama especial atenção o inciso V do Art.7º, que estabelece que a organização institucional preverá a formação dos formadores, incluindo na sua jornada de trabalho tempo e espaço para as atividades coletivas dos docentes do curso, estudos e investigações sobre as questões referentes ao aprendizado dos professores em formação. A investigação científica ocupa, como pudemos ver, um papel central na formação de professores ao lado de um princípio metodológico geral que é traduzido pela ação-reflexão-ação e que aponta a resolução de situações-problema como uma das estratégias didáticas privilegiadas.

Além da preocupação do texto legal com as práticas investigativas como aperfeiçoamento da prática pedagógica, o texto ressalta as novas tecnologias e o trabalho colaborativo, como parte da organização curricular. Novamente, vemos a ênfase na articulação entre os conteúdos e as suas didáticas especiais. A meu ver, essa recomendação deve gerar uma revisão nas organizações departamentais que tradicionalmente colocam de um lado os que "ensinam" e de outro os que "ensinam a ensinar".

Um dos maiores desafios que essas diretrizes nos colocam está registrado no Art. 7º, inciso IV, que diz: as instituições de formação trabalharão em interação sistemática com as escolas de educação básica, desenvolvendo projetos de formação compartilhados. O estágio passa a ter um papel fundamental na formação do professor, sendo a exigência legal um estímulo à construção de projetos inovadores de formação continuada. O Art. 14, § 2º, que prevê a concepção de um sistema de oferta de formação continuada, que propicie oportunidade de retorno planejado e sistemático dos professores às agências formadora, é, na minha opinião, uma fonte de opções para uma interferência positiva na realidade educacional brasileira. A Instituição formadora se associa às escolas que abrem suas portas para receber seus estagiários e uma parceria de mão dupla é estabelecida: as escolas de educação básica oferecem reflexões e saberes fundamentados em suas práticas em diferentes contextos. As Instituições formadoras dialogam com esses saberes avançando a reflexão teórica através de projetos conjuntos de pesquisa. Essa parceria pode unir a prática e a teoria de forma a gerar, colaborativamente, reflexões sobre os diferentes saberes, avançando a teoria e a prática em um processo dinâmico em que todos os seus componentes são igualmente relevantes.

Uma primeira experiência nesse sentido foi desenvolvida pela Profa. Izabel Maria da Silva como parte de seu projeto de doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da UFMG. Utilizando listas de discussão na Internet, a professora e pesquisadora conseguiu integrar estagiários e professores de escolas regulares e cursos de idiomas em um projeto que discutia o ensino de inglês através de projetos. Gerenciando a discussão sobre textos acadêmicos e projetos elaborados, colaborativamente, entre estagiário(s) e o(a) regente de classe, Izabel conseguiu reunir em um mesmo espaço, o virtual, estagiários e professores de escolas diferentes que juntos colaboravam para a formação de novos professores e para a formação continuada em serviço dos profissionais já inseridos no mercado de trabalho.

As diretrizes, aprovadas em fevereiro de 2002, estipulam que, no prazo de dois anos, a partir daquela data, os cursos de formação de professores para a educação básica deverão se adaptar a esta Resolução. Acredito que novas idéias surgirão e que essa é uma oportunidade ímpar para mudarmos o perfil dos cursos de Letras no país.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AUGUSTO, R.C. O inglês como capital cultural no contexto de escolas regulares: um estudo de caso. 2001. Dissertação (Mestrado em Lingüística Aplicada) Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte.

CHAGAS, R.V.C. Didática especial de línguas modernas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.

COSTA. D. N. M. Por que ensinar língua estrangeira na escola de 1º grau. São Paulo: EPU/EDU, 1987.

LEFFA, Vilson J. O ensino de LE no contexto nacional. Contexturas, APLIESP, n. 4, p. 13-24, 1999. 

MOURA, G. Tio Sam chega ao Brasil:a penetração cultural americana. São Paulo: Brasiliense, 1988.

PHILLIPSON, R. Linguistic Imperialism. Oxford: Oxford University Press, 1992.

SANTOS, M. O tempo despótico da língua universalizante. 05/11/200. p.109-114

SILVEIRA, M. I. M. Línguas estrangeiras: uma visão histórica das abordagens, métodos e técnicas de ensino. Maceió: Catavento, 1999.

VOLTAR