PAIVA, V.L.M.O. Reflexões sobre ética na pesquisa Revista Brasileira de Lingüística Aplicada. Belo Horizonte. Vo. 5, n.1. p.43-61, 2005
REFLEXÕES SOBRE ÉTICA E PESQUISA[1]
Vera Lúcia Menezes de
Oliveira e Paiva (UFMG)
Já que a ciência não pode encontrar sua legitimação ao lado do conhecimento, talvez ela pudesse fazer a experiência de tentar encontrar o seu sentido ao lado da bondade. Ela poderia, por um pouco, abandonar a obsessão com a verdade, e se perguntar sobre o seu impacto sobre a vida das pessoas (...)
Rubem Alves (1981, p. 207)
This
paper addresses some ethical aspects in Applied Linguistics research.
Surprisingly, until recently, ethical reflections have received little
attention in the literature of the area. This study, after tracing some
parallels between human research in medicine and in Applied Linguistics,
discusses some problems, having two main aspects as a departure: (1)
relationship among researchers and (2) relationship between the researchers and
their collaborators. Concerning the relationship among researchers, topics such
as authorship and respect to different affiliations are discussed. Seven
questions are raised in order to bring into discussion the relationship between
the researchers and their collaborators. These questions are connected to
ethical aspects, such as privacy, confidentiality, consent and methodology. In
conclusion, it is pointed out that responsibility and solidarity (Moran, 2003)
must be the essential principles when doing research.
Ao participar de uma edição da Revista Brasileira de Lingüística Aplicada que homenageia um dos mais ilustres representantes da Lingüística Aplicada no Brasil, o Dr. John Robert Schmitz, escolhi refletir sobre ética e pesquisa por três motivos. O primeiro, por estar relacionado a uma das preocupações do homenageado. Recentemente, Schmitz apresentou um trabalho sobre a ética na tradução no XVI congresso da International Federation of Translators/Fédération Internationale des Traducteurs (FIT). Nesse texto, Schmitz (2002) resenha uma série de autores que escreveram sobre ética na tradução e discute a questão em torno da visibilidade do tradutor (no texto, nos créditos do trabalho, e nos para-textos) e dos direitos autorais que, geralmente, protegem o autor, mas ignoram o tradutor. O segundo motivo foi minha participação em uma mesa-redonda sobre ética na pesquisa, na reunião do GT de Lingüística Aplicada da ANPOLL de 2002, quando apresentei algumas reflexões sobre o tema. O terceiro motivo advém do fato de eu ter tido a oportunidade de compartilhar com John Schmitz um primeiro rascunho das reflexões que agora desenvolvo e de ter tido o privilégio de contar com seus comentários.
A ética, segundo Cenci (2002, p. 90), nasce amparada no ideal grego da justa medida, do equilíbrio das ações. Cenci explica que a justa medida é a busca do agenciamento do agir humano de tal forma que o mesmo seja bom para todos. Se a pesquisa envolve pesquisadores e pesquisados – ou pesquisadores e participantes –, é importante que a ética conduza as ações de pesquisa, de modo que a investigação não traga prejuízo para nenhuma das partes envolvidas. Dupas (2001, p. 75), lembrando Habermas, para quem a teoria deve prestar contas à práxis, alerta que o saber não pode, enquanto tal, ser isolado de suas conseqüências. Devido à imprevisibilidade das conseqüências de uma investigação, é imperativo que a ética esteja sempre presente ao elaborarmos um projeto de pesquisa, principalmente, quando esta lida com seres humanos.
A reflexão sobre ética na pesquisa é uma preocupação bem recente em todas as áreas da ciência. Uma análise de quinze livros[2] de metodologia de pesquisa brasileiros e estrangeiros e de três manuais de orientações sobre pesquisa publicados por universidades brasileiras, que fazem parte de minha biblioteca, revela que apenas um livro (Schachter e Gass,1996) inclui considerações sobre a ética na pesquisa. As demais obras não dedicam sequer uma seção para discutir o problema e, nos livros que apresentam índices onomásticos, não foi localizada nenhuma ocorrência da palavra “ética”.
Os livros brasileiros analisados, em sua maioria na área de ciências sociais, ensinam a elaborar projetos de pesquisa, mas, quando tratam da coleta e análise dos dados, o alvo é apenas orientar o leitor a ser bem-sucedido em sua pesquisa. Em um dos livros, o pesquisador é aconselhado a dar todas as instruções ao pesquisado, demonstrar a importância da pesquisa, deixar claro qual é o seu destino final e garantir o anonimato. No entanto, esses conselhos parecem ser muito mais uma estratégia para se conseguir a colaboração dos pesquisados do que para se enfatizar o direito de quem colabora com a pesquisa de ser devidamente esclarecido sobre o destino dos dados que está produzindo. Em um dos livros, a afirmação “A boa vontade, a disposição do pesquisado para responder o questionário é outra dificuldade a ser superada” corrobora minha hipótese de que o foco é o sucesso da pesquisa e de que as questões éticas, envolvidas no processo de desenvolvimento de uma investigação científica, são ignoradas. Não se questiona, por exemplo, se a falta de disposição para colaborar pode ou não estar associada ao tipo de investigação ou às questões propostas que poderiam estar trazendo constrangimentos ao colaborador.
Na medicina, pelo risco mais evidente que a pesquisa pode representar para seus pesquisados, o debate sobre a ética encontra-se em estado mais avançado. Motta (1998), em sua tese de doutorado, analisou periódicos na área de pediatria, no período de 1928 a 1996, e concluiu que, até a década de 70, as diretrizes éticas existentes não eram observadas. O autor acrescenta, ainda, que, hoje, o desafio para a ciência é o de responder a novas perguntas, respeitando os limites éticos.
Apesar de estarmos inseridos em uma área de investigação
bastante diferente da biomédica, acredito que podemos traçar alguns paralelos
entre as questões éticas das duas áreas.
[n]a primeira metade do século XX, reproduzindo o que ocorria extensa e intensamente nos EUA e seguramente em todo o mundo ocidental na prática de ensino médico (a utilização, sem limites éticos, de indigentes), os pacientes sem recursos financeiros para bancar sua assistência à saúde, passaram a ser cada vez mais utilizados em experimentos biomédicos, seu uso sendo justificado como a maneira desses pobres recompensarem a sociedade pelos gastos com sua saúde.
Entre nós, é cada vez mais recorrente a coleta de dados em instituições de ensino público. Parece haver um consenso tácito de que quem não “paga” pelos seus estudos teria mais obrigação de aceitar a presença de um pesquisador em sua escola. Há, também, um preconceito generalizado contra as escolas públicas e um desejo de expor suas deficiências, sem, contudo, lhes dar o devido retorno, ou ainda, sem fazer uma análise dos riscos que os resultados de uma pesquisa podem representar para a imagem da instituição. Como nos lembra Moran (2003, p.35), ao discorrer sobre ética, as atividades científicas necessitam de um reforço moral. Segundo o autor, a moral tem dois tipos de alinhamento: o sentimento de responsabilidade e o sentimento de solidariedade. Nesse sentido, entendo que apontar as falhas no ensino público sem trazer nenhum retorno para os pesquisados apenas contribui para desestabilizar o que já esta fragilizado, o que é, no mínimo, irresponsável e não solidário. Moita Lopes (1996: p. 9) também sinaliza na mesma direção ao ressaltar que
[c]ertamente, o pesquisador deve ter cuidado para que sua pesquisa não seja usada para tirar a voz e caçar o poder de quem está em situação de desigualdade. Fazer pesquisa, i.e., produzir conhecimento, é uma forma de construção de significado prestigiada na sociedade e, portanto, impregnada das relações de poder inerentes à prática discursiva. Assim, os resultados de nosso trabalho podem ser usados para desempregar, condenar, criar incompetência, etc.
Recentemente, uma mestranda relatou ter tido de abandonar uma coleta de dados, pois a direção da escola ameaçou demitir a professora colaboradora caso ela não voltasse atrás em informações dadas à pesquisadora sobre suas ações pedagógicas. No caso em pauta, a professora admitira não conhecer determinadas abordagens de estudo textual. A direção da Instituição condicionou a coleta de dados a uma censura prévia, o que sepultou qualquer possibilidade de se dar continuidade à investigação.
Segundo Motta (1998, p. 46), nos países ricos há restrições mais rigorosas na pesquisa médica. Podemos dizer que os mesmos princípios econômicos regulam as relações entre os lingüistas e os contextos pesquisados. Se, por um lado, o poder econômico não chega a seduzir e mesmo corromper eticamente as atividades científicas em nossa área, por outro lado, serve de barreira para que os pesquisadores não adentrem certos ambientes. Raramente temos notícia de uma pesquisa sendo realizada em instituições privadas por pesquisador totalmente alheio àquele contexto. Geralmente, quando a pesquisa acontece, o pesquisador também pertence à escola e, por isso, consegue investigar naquele ambiente, sem muita dificuldade. O fator econômico é, portanto, um impedimento para que o pesquisador adentre os espaços privados. Mesmo quando ele consegue permissão, restrições lhe são impostas com freqüência.
Um exemplo de imposição de restrições está relatado na pesquisa de doutorado de Mello (2002), orientada por John Schmitz. Ao pesquisar sobre bilingüismo em uma escola de elite, Mello, além da autorização da escola, também solicitou o consentimento dos pais para gravar, em vídeo, alunos em interação espontânea na sala de aula. Diz ela:
Mais ou menos 50% dos pais não autorizaram as gravações de seus filhos, o que gerou um certo tumulto na rotina da escola e das aulas, pois foi necessário retirar das salas de aula parte das crianças durante os momentos de filmagem. O choro e o descontentamento de algumas crianças que queriam ser filmadas, mesmo sem a autorização dos pais, foram fonte de constrangimento para mim e para as professoras. (Mello, 2002, p.153)
Esse e outros incidentes levaram a pesquisadora a interromper as gravações em vídeo. A doutoranda, em respeito à ética, preferiu abrir mão de importante instrumento de pesquisa. Além de não ter a autorização de metade dos pais, ela percebeu que a pesquisa estava alterando a rotina da sala de aula, o que não considerava ético. As gravações continuaram a ser feitas apenas em áudio para as quais a direção da escola considerou desnecessária a solicitação de autorização dos pais, uma vez que a identidade das crianças estaria preservada (Mello, 2002, p. 154).
A pesquisa de Mello nos remete às reflexões de Motta. Segundo ele, até recentemente, as crianças eram vistas não como titulares de direito, mas como uma extensão de seus pais, que decidiam quais eram seus interesses. As perguntas que Motta (1998, p. 47-48) faz sobre a pesquisa biomédica também são pertinentes em nossa área:
a.
Os
pais podem permitir que as crianças sejam submetidas à pesquisa?
b.
Têm
as crianças o direito de dar ou negar seu consentimento?
c.
O
Estado pode proibir, apesar da permissão dos primeiros?
Eu acrescentaria, o
professor ou a direção da escola tem o direito de autorizar a observação de
seus alunos ou a utilização de seus dados sem que eles ou seus pais tenham
consentido? Em outros contextos de trabalho, a administração tem o direito de
permitir a gravação de interação entre seus funcionários e clientes sem a
permissão dos dois segmentos? Estas são perguntas nem sempre feitas em nossa
área e que deveriam merecer nossa atenção.
Duff e Early (1996, p. 22) apresentam as seguintes
considerações para assegurar o tratamento ético à pesquisa humana.
Os autores alertam para o
fato de que não basta proteger o anonimato dos participantes, pois, dependendo,
por exemplo, de suas falas ou do cargo que as pessoas ocupam, sua identidade é
facilmente identificada. Alertam, também, para o cuidado em não se alterar a
rotina dos contextos pesquisados.
Entendem-se como dissidentes aqueles pesquisados que emitem opiniões contrárias ao sistema e que poderiam sofrer represálias caso fossem identificados. O pesquisador deve, ainda, assegurar que suas ações não se configurem como intrusões que tragam prejuízo ao contexto pesquisado.
Integridade
da pesquisa
Quanto à integridade da pesquisa, Duffy e Early (1998) chamam a atenção para a necessidade de se garantir, por exemplo, que a pesquisa não beneficie apenas quem a financia.
Metodologia
Esse último aspecto é particularmente importante quando se trata de pesquisa experimental. Os autores advogam que não é justo negar aos grupos de controle tratamentos experimentais ou inovadores que o pesquisador entende ser benéfico ao grupo de pesquisa.
A Lingüística Aplicada brasileira vem se afastando dos modelos experimentais em prol de investigações de base etnográfica, o que minimiza essa última questão. No entanto, outros problemas emergem e nos levam a outros tipos de reflexões que desenvolvo, a seguir, divididas em dois aspectos: relação entre pesquisadores e relação entre pesquisador e pesquisado ou participante de pesquisa.
Na relação entre pesquisadores, levanto cinco questões.
1. O respeito ao trabalho do colega.
Cerca de 250
anos atrás, o filósofo Hume advertia que nada poderia ser mais contrário à
filosofia do que ser taxativo e dogmático (Motta, 1998, p.164) e, mais
recentemente, Garcia e Silva (1984, p. 107) criticam a “epistemologia
purista” sempre disposta a levantar acusações que apontam defeitos ideológicos
nos outros discursos, isentando ao mesmo tempo o próprio discurso.
Estamos vendo,
dentro da Lingüística Aplicada, a repetição de momentos desconfortáveis que
aconteceram outrora em outras áreas, inclusive na Lingüística, em que correntes
teóricas se digladiavam, menosprezando o trabalho do outro e advogando a
supremacia de seu trabalho. É recente a disputa entre gerativistas e
funcionalistas, lingüistas formais e analistas do discurso, além do desprezo de
outros tantos pelos profissionais que fazem investigações na área do ensino,
considerada como inferior e não científica, principalmente se a opção é por uma
metodologia qualitativa, sem tratamento estatístico.
O grupo de lingüistas aplicados cresceu, a área criou uma
certa identidade e conseguiu o reconhecimento da academia e das agências de
fomento. No entanto, o crescimento trouxe uma diversidade de correntes teóricas
e algumas divergências e generalizações precipitadas. Alguns pesquisadores que,
paradoxalmente, se identificam como lingüistas aplicados passaram a criticar a
própria Lingüística Aplicada, atribuindo-lhe alguns qualificativos, tais como
autoritária, dogmática, positivista, ingênua etc., ignorando que as respostas
dadas aos problemas são sempre soluções temporárias e que a mudança de
paradigma de uma visão positivista para uma visão não-linear não é uma
descoberta privilegiada desses pesquisadores, mas algo que começa a se refletir
em várias áreas do conhecimento. A ciência está se questionando e teorias como
a da complexidade, ou teoria do caos, estão sendo adotadas por várias áreas,
tais como a física, a matemática, a economia, a administração, a educação
física, e até a Lingüística Aplicada, cujo pontapé inicial foi dado por Larsen
Freeman (1997).
É preocupante ver que pesquisados abrem sua sala de aula, fornecem dados, expõem sua produção acadêmica e colaboram com os pesquisadores, mas, em troca, vêem todo o seu trabalho desconstruído, sem que lhes seja apresentada nenhuma alternativa, interrompendo a cadeia ação-reflexão-ação, pois a reflexão desses pesquisadores aponta para conclusões niilistas sem saída, e sem indicação de caminhos alternativos.
Esse tipo de “epistemologia purista” vem sendo contestada pela filosofia da ciência, pois nenhuma afiliação teórica é detentora da verdade. Afinal, como diz Bourdieu (2001, p. 64),
(...) o pesquisador oferece
o mundo tal como ele o pensa (isto é, como objeto de contemplação,
representação, espetáculo) como se fosse o mundo tal como ele se apresenta
àqueles que não têm a disponibilidade (ou o desejo) de se retirar dele para
pensá-lo; situa como princípio de suas práticas, ou seja, em sua “consciência”,
suas próprias representações espontâneas ou elaboradas, ou pior, os modelos que
teve de construir (por vezes contra sua própria experiência ingênua) para dar
conta de suas práticas.
2.
Autoria e co-autoria
Se essa questão já está clara para algumas áreas, como a física, por exemplo, para nós ainda não há consenso se temos ou não o direito de reivindicar co-autoria nos trabalhos de nossos orientandos. Entendo que essa co-autoria só se justifica se tivermos uma participação substancial no trabalho a ser publicado, como recomendando pelo grupo de Vancouver:[7]
O crédito à autoria deveria levar em conta apenas as contribuições substanciais 1) para a concepção e planejamento, ou análise e interpretação dos dados; e 2) em forma de rascunho do artigo ou revisão crítica com conteúdo intelectual importante; e 3) com aprovação final da versão a ser publicada.. As condições 1, 2,e 3 devem ser respeitadas. A participação apenas na captação de recursos ou na coleta de dados não justifica a autoria. A supervisão geral de grupo de pesquisa não é suficiente para se ter autoria.[8]
3. Pareceres sobre os trabalhos dos colegas
Estariam os pareceristas abertos a opções teóricas
ainda não consagradas ao avaliar projetos, artigos e pedidos de auxílio para
pesquisa ou apoio a eventos? Estariam os pareceristas verificando o mérito dos
projetos e dos trabalhos sem preconceito? Ao emitir os pareceres, os
consultores respeitam os prazos e usam um tom respeitoso e construtivo?
Outra questão diz respeito aos editores de revista
que têm seu trabalho, muitas vezes, dificultado e até duplicado em função dos
atrasos dos pareceristas em emitir seus pareceres. Quando a demora ultrapassa o
limite do aceitável, o editor é obrigado a acionar outro parecerista e atrasar
a publicação de alguns textos.
Uchiyama e Simone (1999) apresentam os seguintes
conselhos aos pareceristas:
Quanto à ética, olhe o mérito, “a competência com a qual o argumento é conduzido e a importância dos resultados (APA, 1992). Cuidado com suas próprias tendências. Pergunte a si mesmo se sua orientação teórica poderia estar em conflito com a do autor e se tal conflito pode afetar seu parecer. Evite conflitos de interesses. Isto tem sido descrito como “competição acadêmica, relações pessoais e de financiamento” (APA, 1992). Quanto à etiqueta, seja rápido ao fazer os pareceres e escolha um tom construtivo e respeitoso.[9]
Certamente, esses
conselhos, se seguidos, poderiam facilitar o trabalho dos editores. Uma outra
questão relacionada a pareceres diz respeito ao anonimato, tanto dos autores
dos trabalhos quanto dos nomes dos pareceristas. Nos periódicos e agências de
fomento, o anonimato dos pareceristas é sempre garantido. Mas há outras
instâncias da vida acadêmica, como análise de projetos de pesquisa em cursos de
pós-graduação e análise de trabalhos submetidos a eventos, em que fica mais
difícil a garantia do anonimato dos pareceristas.
No caso de eventos, não há
consenso, ainda, se os pareceres sobre os trabalhos, devem ou não ser
divulgados. Minha opinião é contrária à sonegação do conteúdo dos pareceres,
pois a questão ultrapassa a ética e vai para o campo da legalidade.
Na Constituição
Brasileira, existe um instrumento chamado hábeas-data que pode ser
utilizado para evitar a sonegação de qualquer informação que diga respeito ao
interessado.
O inciso XIV, do artigo 5,
diz que é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da
fonte, quando necessário ao exercício profissional. O inciso LXXII diz que
conceder-se-á habeas-data
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constante de registros e bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público.
Assim, entendo, que, pelo menos nas instituições públicas, o acesso a pareceres é direito dos interessados.
4. Citações de trabalhos de outros pesquisadores
A utilização responsável de trabalhos alheios é
outra questão que merece nossa atenção. Surgem dúvidas sobre os graus de
apropriação, mas as reclamações mais constantes dizem respeito ao plágio. O que
é plágio? O plágio tem sido considerado como cópia integral ou parcial de
trabalho intelectual alheio, sem a devida menção ao autor. Os problemas, no
entanto, não se restringem à cópia. Informar ao leitor, no início de um texto,
por exemplo, que aquele trabalho é baseado em outro não dá ao autor o direito
de reproduzir, ipisis literis, o texto de outrem, sem as devidas aspas.
Apropriar-se de uma idéia e tratá-la com outras palavras é, na minha opinião,
outra modalidade de plágio.
Com o
advento da Internet, o acesso rápido a uma grande quantidade de textos, e a
pressão, cada vez maior, para produção acadêmica, são crescentes as ocorrências
de cópias de trechos inteiros de artigos, dissertações e teses disponibilizados
na rede mundial de computadores, principalmente nas produções discentes. Há,
ainda, um outro problema que merece a atenção. Algumas citações são retiradas
de um contexto e transportadas para outro, desvirtuando, muitas vezes, a
intenção inicial do autor citado.
5. Cooperação com outros pesquisadores
Se ser ético é ser responsável e solidário, outro
contexto, onde a ética se manifesta, é na cooperação com os colegas
responsáveis por organização de eventos, gerenciamento de projetos e líderes de
grupos de pesquisa. Os pesquisadores éticos fornecem as informações necessárias
para alimentar bancos de dados ou para documentar projetos de eventos, em tempo
hábil, sendo solidários, por exemplo, com quem organiza um evento e que
necessita de informações, tais como resumos e curricula vitae para
documentar um projeto.
Passo, agora, a discutir a relação entre pesquisador e pesquisado através de sete perguntas.
1. A coleta é feita sem alterar o ritmo e o planejamento da Instituição?
Motta (1998, p. 212) afirma que os interesses da pessoa têm prioridade sobre os interesses da ciência e da sociedade. Felizmente, os interesses de pesquisa em nossa área são muitas vezes contrariados em função da ética, pois o pesquisador precisa se adequar aos espaços que lhe são abertos, sem interferir no dia-a-dia da sala de aula ou do ambiente de trabalho que investiga. Como lembra Rounds (1996, p. 53), cabe ao pesquisador conseguir o máximo de informação possível sem violar a privacidade ou quebrar a confiança dos pesquisados.
2. A Instituição e os informantes/participantes estão devidamente informados sobre os objetivos da pesquisa?
A ética indica
que o consentimento esclarecido deveria ser observado e se não for possível um
esclarecimento total, no momento da coleta de dados, novo consentimento deveria
ser obtido logo após a coleta. Caso não haja a devida autorização, os dados
deveriam ser descartados. Assim, Polio (1996, p. 74) aconselha que,
[q]uando um pesquisador
consegue o consentimento de professores para observar ou gravar suas salas de
aula, apenas parte do objetivo do estudo pode ser revelado para não afetar o
comportamento do professor. No entanto, depois da conclusão do estudo, qualquer
pesquisador tem a obrigação de informar ao professor os detalhes do estudo.[10]
3. A forma de transcrição de dados coloca o informante em situação constrangedora?
Recentemente, uma professora de uma escola pública, que colaborou com uma pesquisa, ficou profundamente magoada quando, após a defesa da dissertação, descobriu que a pesquisadora havia usado um tipo de transcrição típica dos trabalhos em sociolingüística, sinalizando a ausência dos esses finais, marcadores de plural, e de outras características do discurso oral mineiro. A falante não se reconhecia na transcrição e afirmava que o registro dos dados deturpava sua forma de falar. No caso em pauta, a forma de transcrição era irrelevante, pois a pesquisa não tinha por objetivo investigar a fala da professora e sim aspectos de sua atuação pedagógica. O desconhecimento da pesquisada sobre a opção de transcrição feita pela pesquisadora gerou constrangimentos que poderiam ter sido evitados.
Advogo, portanto, que se assegure, ao informante, a oportunidade de ler as transcrições e dar o seu aval antes da conclusão do trabalho.
4. O pesquisador se preocupa em dar retorno aos seus informantes?
A mesma professora do exemplo anterior se ressentiu
por não ter sido convidada para a defesa da dissertação e por ter tido acesso
ao trabalho só algum tempo depois da defesa. No caso específico, as conclusões
eram bastante positivas em relação ao contexto pesquisado, mas, geralmente, os
trabalhos ressaltam mais aspectos negativos do que positivos.
Considero que, principalmente, nas pesquisas de
natureza etnográfica, os resultados devem ser apresentados aos participantes
antes mesmo do fechamento do texto, pois é importante que as vozes dos
pesquisados também estejam presentes no trabalho e que o pesquisador se
disponha, de alguma forma, a contribuir com quem lhe abre as portas.
Informar ao
professor sobre os resultados da pesquisa pode ser uma questão muito delicada,
principalmente quando o trabalho é eivado de críticas negativas. Spada, Ranta e
Lightbown (1996, p. 41) avaliam que o pesquisador não deve usar o resultado de
sua pesquisa para acusar o professor ou ditar regras de como ensinar. No
entanto, acreditam que o pesquisado tem o direito de ter sua participação
recompensada e saber qual foi o resultado de sua participação. Uma sugestão das
autoras seria a distribuição de resumo da pesquisa em formato acessível aos
envolvidos. Defendo que todo participante de pesquisa tem direito a ter acesso
ao texto integral da pesquisa, seja ela positiva ou negativa. O importante,
ainda, do ponto de vista ético, é que o anonimato do participante seja
garantido de forma a evitar que ele sofra qualquer conseqüência advinda dos
resultados da pesquisa.
5. O pesquisador omite informações
sobre o pesquisado de forma a ressaltar o foco de seu trabalho?
É muito comum lermos relatos de pesquisa sobre a
sala de aula em que apenas os aspectos negativos são relatados, passando a
impressão errônea de que o(s) pesquisado(s) não têm nada de positivo para ser
registrado. Mesmo que os aspectos positivos não sejam o foco do trabalho, é
justo que sejam mencionados, mesmo quando o anonimato está preservado.
6. No caso dos experimentos e pesquisação, as interferências propostas são benéficas às pessoas que estão contribuindo para a pesquisa? Nos experimentos, haverá algum prejuízo para o grupo de controle?
Segundo Mota (1998), nas pesquisas biomédicas, foram
feitas atrocidades em nome da ciência. O autor cita um exemplo recente, o da
pesquisa da vacina contra a poliomelite realizada nos Estados Unidos por Albert
Sabin na década de 50, quando grupo de
controle daquele experimento, deixou de receber a vacina. Por outro lado,
Albert Sabin foi profundamente ético ao não patentear sua descoberta, tornando
a imunização universal e barata.
Na Lingüística Aplicada, é decrescente o número de
experimentos e não temos registro recente de nenhuma pesquisa que negue aos
participantes um tratamento que poderia contribuir para sua aprendizagem.
Quando muito, o pesquisador interfere em um grupo e compara com outro cuja
condução está a cargo de outro professor que tem outra opção de trabalho. Mesmo
apostando que o tratamento inovador pode ser benéfico a todos, insistir que
todos mudem de opção esbarra em outro aspecto ético que é o de evitar impor
comportamentos a um determinado grupo. Mesmo acreditando que algo é bom, é
desejável que o pesquisador não seja dogmático e não imponha suas crenças, até
porque, quando falamos de aprendizagem, outros fatores interferem nesse
processo, e as alterações metodológicas não são as únicas responsáveis pelo
sucesso ou pelo fracasso dos aprendizes.
7. Ao usar questionários e entrevistas, o pesquisador respeita as preocupações do informante?
Bourdieu
(2001, p. 73) questiona a relação entre entrevistados e entrevistadores.
Segundo o autor,
...haverá pesquisadores (sobretudo entre os especialistas em pesquisas
de opinião) capazes de formular perguntas às quais os entrevistados podem
sempre fornecer uma resposta mínima, sim ou não, mas que eles mesmos jamais
haviam formulado até esse momento em que elas lhes haviam sido por assim dizer
impostas, e que eles nem poderiam de fato formular (ou seja, produzi-las com
seus próprios recursos) a menos que estivessem dispostos e preparados por suas
condições de existência a assumir em relação ao mundo social e à sua própria
prática o ponto de vista escolástico a partir do qual tais perguntas foram
produzidas, como se eles fossem uma coisa totalmente diversa do que de fato
são, sendo isso justamente o que é preciso compreender.
Assim,
faz-se necessário questionar os próprios questionários. Muitas vezes, o
informante responde a qualquer coisa para se ver livre do pesquisador ou, até
mesmo, para agradá-lo. Outras vezes, as questões propostas não são relevantes
para aquele indivíduo, ou ele nunca se questionou sobre aquilo, e o
entrevistador não lhe dá tempo suficiente para refletir antes de responder. Não
seria isso uma forma de imposição?
Conclusão
Algumas universidades, em especial nos países ricos, possuem normas muito claras sobre as questões éticas. Considero relevante descrever pelo menos um exemplo de como essas questões são tratadas.
Na Universidade de Melbourne, existe um código de ética[11] que deve ser observado por qualquer pessoa que participe de uma equipe de pesquisa (orientadores, alunos e funcionários) sempre que os projetos envolvam o uso de dados arquivados em que as pessoas possam ser identificadas ou que haja coleta de informações sobre seres humanos (e organizações) através de entrevistas, levantamento de opinião, questionários, observação de comportamento humano, gravações em áudio e vídeo, administração de testes e estímulos, para citar apenas alguns dos instrumentos de pesquisa utilizados na Lingüística Aplicada.
O código de ética de Melbourne prescreve que os pesquisadores devem observar a integridade e o profissionalismo, evitar conflito de interesses e garantir a segurança dos envolvidos na pesquisa. Além disso, os métodos e resultados devem estar abertos a exame e a debate.[12]
Uma das exigências daquela universidade é de que os dados sejam gravados de forma a ficarem intactos, nos departamentos, por, pelo menos, cinco anos. Os dados, relacionados às publicações, devem ficar disponíveis para discussão com outros pesquisadores, admitindo-se uma exceção quando prevalecem informações confidenciais, como, por exemplo, em caso de proteção de direitos autorais.
As universidades brasileiras também começam a criar seus comitês e a exigir que pesquisas com humanos, em todas as áreas, sejam aprovados pelos respectivos comitês. Alguns exemplos são a UFG [http://www.prppg.ufg.br/comite/index.html] e a UFMG [http://www.ufmg.br/coep/coep.html]. O exemplo dessas universidades pode nos ajudar a pensar sobre essas questões éticas. Como diz Motta (1998, p. 75), a ética não é algo dado pela natureza, mas um produto de nossa consciência histórica. Não vem pronta para ser consumida, mas é construída na ação humana, que sempre exige a presença de um outro. Quem exercita a ética são indivíduos que fazem parte de uma comunidade. Seus atos são morais somente se considerados nas suas relações com os outros. Sem os outros, não há ética.
Não estou propondo normas a serem seguidas, pois acredito na auto-ética, fundamentada por valores morais de responsabilidade e de solidariedade e confrontada pela “incerteza ética”, como explicada por Moram (2003, p. 43). Como afirma o autor,
[e]sta (a incerteza
ética) encontra sua explicação no que eu chamo de ecologia da ação, que pode
ser enunciada da seguinte forma: os efeitos desejados de um ato não são,
necessariamente, os que são produzidos por ele. Com efeito, no momento em que a
ação é lançada no campo das inter-retroações, podem mudar seu sentido,
desviá-la, e mesmo fazê-la tomar um sentido oposto ao que é desejado.
Concordo com Cenci (2002, p.88), quando nos adverte de que:
A ética
não pode prescrever conteúdos ao agir, nem pode instrumentalizá-lo; não é seu
papel fornecer soluções concretas ao agir humano. A ética precisa contar com a
capacidade de os indivíduos encontrarem saídas plausíveis, racionais para o seu
agir. A ética filosófica (formal e universalista) não pode,
paternalisticamente, dizer o que o indivíduo deve fazer, prescrevendo ações;
ela não pode se constituir em um receituário para a conduta cotidiana dos
indivíduos, nem servir de desculpa para justificar seu agir mediante motivos
puramente externos.
A justa medida requerida pela ética não é extraída por intermédio de
fórmula alguma; ela é medida qualitativamente, por isso requer mediania.
A Lingüística Aplicada, ao lidar com a linguagem como prática social, está, constantemente, enfrentando questões éticas. Assim, é importante que questionemos, com freqüência, nossa metodologia de trabalho e as questões que nos propomos a investigar. Retomando os princípios advogados por Moran (2003), acredito que, se o sentimento de responsabilidade e de solidariedade guiarem nossas ações, poderemos ser aceitos em comunidades discursivas diversas sem constrangê-las, assegurando-lhes privacidade, segurança e tratamentos equânimes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, R. Filosofia da
Ciência: introdução ao jogo e suas regras. 8a ed. São Paulo:
Brasiliense: 1981.
BOURDIEU, P. Meditações
pascalianas.Trad. Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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[1] Agradeço aos meus colegas e amigos John Schmitz e Francisco José Quaresma de Figueiredo pelas valiosas contribuições.
[2] Por questões éticas, prefiro omitir as referências bibliográficas.
[3] Minha tradução de “Privacy and
confidentiality/Protection of focal individuals or people whose views/voice
are recognizable/Awarenes of relative intrusiveness of research”
[4] Minha tradução de “Security/Future
ramifications of identification of dissenting individuals/Consequences of
researcher intrusiveness”
[5] Minha tradução de ”Researcher
integrity/Fairness to all stakeholders”
[6] Minha tradução de “Methodology/Denial
of experimental/innovative treatment to control groups in the face of dissent”
[7] Um pequeno grupo de editores de
periódicos de clínica geral se encontrou informalmente em Vancouver, em 1978,
para estabelecer normas para os manuscritos a serem submetidos aos seus
periódicos. O grupo ficou conhecido como o Grupo de Vancouver. Minha
tradução de “A small group of editors of general medical journals met
informally in Vancouver, British Columbia, in 1978 to establish guidelines for
the format of manuscripts submitted to their journals. The group became
known as the Vancouver Group.” [http://www.icmje.org/index.html]
[8] Minha tradução de “Authorship
credit should be based only on substantial contributions to 1) conception and
design, or analysis and interpretation of data; and to 2) drafting the article
or revising it critically for important intellectual content; and on 3) final
approval of the version to be published. Conditions 1, 2, and 3 must all be
met. Participation solely in the acquisition of funding or the collection of
data does not justify authorship. General supervision of the research group is
not sufficient for authorship.” [http://www.icmje.org/index.html]
[9] Minha tradução de “Ethics: DO Look for merit,
"competence with which the argument is conducted and the significance of
results" (APA, 1992)./ Look out for your own biases. Ask yourself if your
theoretical orientation could be in conflict with the author and whether such a
conflict may affect your review. /Avoid conflicts of interest. These have been
described as "academic competition, personal relationships and financial
relationships" (APA, 1992). Etiquette: DO
Be expedient with your reviews; Be sure the tone of your review is
constructive and respectful.
[10] Minha tradução de When a
researcher gets consent from teachers to observe or record their classrooms, only
a certain amount about the purpose of the study can be revealed so as not
affect a teacher’s behavior. However, after the study is done, a researcher has
an obligation to provide the teacher with details of the study.
[11] O código pode ser acessado em [http://www.unimelb.edu.au/ExecServ/Statutes/r171r8.htm]
[12] Minha tradução de “Research workers
should, in all aspects of their research, demonstrate integrity and
professionalism, observe fairness and equity, avoid conflicts of interest, and
ensure the safety of those associated with the research. Research methods and
results should be open to scrutiny and debate.”