FELIZES PARA SEMPRE
Vera Menezes (Fevereiro de 2006)
Rute adora cozinhar. Tem preferência por pratos salgados, o que deixava o marido azedo. Ele não saía do bar da esquina, onde curtia os amigos e sempre fechava a noite com pé de moleque de rapadura da boa. Dizia que era para curar a ressaca. Connie é também chegada numa cozinha, mas sua especialidade são os doces. Nem a doçura de Connie e nem seus pratos prediletos adoçavam seu casamento. O parceiro trocava o doce e o afeto por torresmo e cachaça servidos na mesa de boteco.
Connie e Rute estavam naquela idade da falta de sonhos e do saco enchido de marido, do casamento sem tempero, feijão com arroz, sopa de inhame sem sal. Os dois eram ótimos de cama: dormiam a noite toda e embalavam a falta de sono e os calores de suas mulheres com fratulências e roncos. Eram mestres no desamor, não beijavam mais, não abraçavam.... Bandeiras a meio pau serviam sexo com gosto de chuchu e muito bafo de cerveja, uma vez por semestre. Connie e Rute eram discretas, não trocavam confidências, mas estavam ambas passando pelas mesmas experiências, as mesmas carências, as mesmas frituras.
Connie pensava: aturei as grosserias deste homem a vida inteira só por causa do sexo sem sal. Só sobraram as grosserias. Rute não entendia o que a fizera sustentar aquele vagabundo a vida inteira em troca de algumas trepadas rápidas foi-bom-para você-não-foi. Sentiam-se ambas escaldadas com tanto desafeto.
Os filhos já eram adultos e pouca atenção davam a elas. Foram desrespeitosos a vida toda e sempre tiveram o apoio dos pais. Agora só sabiam filar o almoço na folga de suas empregadas e empurrar os netos para seus colos quando tinham um bom programa social. As noras, bem as noras..... Os maridos, homens requentados, ora estavam no boteco, ora em frente do computador ou da tela da televisão. Elas ficavam sempre em banho-maria, stand-bye, lista de espera.
Estavam aposentadas e não dependiam dos maridos para a subvivência. Connie passara uma semana hospedada em um hotel, após levar um tapa na cara do marido irritado com suas verdades. Voltou para casa por que os filhos pediram muito e transmitiram o pedido de desculpas do pai. Ela fingiu acreditar. Ele estava com diabetes e pressão alta e eles temiam pela saúde do pai. Ela também fingiu acreditar. O que eles não queriam era cuidar do pai. Rute sonhava em comprar um apartamento pequeno, onde não coubesse a família – marido e três sanguessugas com mais de 30 anos, um deles desquitado e que só se lembrava dela para olhar os netos no fim de semana enquanto curtia a vida com a namorada. O marido tinha o terrível defeito de tratá-la com desprezo na frente dos amigos e ela tinha vontade de matá-lo. Quantas vezes, ao expressar alguma idéia diferente da dele, mandara que ela calasse a boca, condimentando o ambiente com seu mal humor. Ele se sentia no direito de antecipar o final de suas piadas, completar suas frases e desmenti-la, sistematicamente, quando contava um caso: ora era o tempo, ora o local, ora eram os personagens que ele trocava mesmo quando não era testemunha da história.
Matar seria uma opção, mandar para a puta que o pariu seria outra, mas deveria haver algo melhor. Algo que lhe cortasse o coração encharcado de álcool, que o fizesse sofrer mais que tapa na cara ou óleo quente na pele, pensou Rute.
Matar seria uma opção, mandar para a puta que o pariu seria outra, mas deveria haver algo melhor. Algo que lhe moesse o coração conservado no álcool, que o fizesse sofrer mais que comida salgada, mais que as inúmeras patadas que recebera calada na frente dos amigos, pensou Connie.
A neta-tipo-assim de Connie e o neto-nem-fudendo de Rute convidaram os avós para a estréia de sua banda de rock. O marido de Connie disse que não ia nem fudendo, mas lhe deu uma carona até o teatro. O de Rute pediu que ela desse uma desculpa ao neto, tipo assim, seu avô está com pressão alta. As duas se encontraram na platéia. Depois do espetáculo bate-estaca, abraçaram os netos e foram embora. Rute ofereceu uma carona para Connie. No estacionamento, perceberam que ambas estavam sem vontade de voltar para casa e resolveram ir a um bar. Ligaram para os maridos que não se importaram com a demora das duas, afinal sempre brincavam que dariam um dote se algum malandro as quisesse como amantes. O de Rute era mais escrachado. Quando ela reclamava da lei seca na cama, ele retrucava: “se você conseguir arrumar um homem para você, arrume um para mim também”.
Rute e Connie estreitavam cada vez mais a amizade. Passaram a sair mais vezes. Iam ao cinema, ao teatro, às feiras de artesanato, a barzinhos. Voltavam para casa alegrinhas com as caipirinhas glassando a alma. Os netos aprovavam a amizade das duas vizinhas.
Um dia, iluminadas pelas faíscas dos atritos domésticos tiveram a grande idéia. Mentir aos maridos que estavam apaixonadas e sair de casa. Alugaram um apartamento e foram cultivar a amizade. Antes tiveram o cuidado de indenizar as empregadas, faxineiras, lavadeiras e passadeiras que sempre pagaram com seus salários. Juntas não precisavam de empregados. Dividiriam o trabalho doméstico e sobraria mais dinheiro para a diversão. Os maridos, que sempre pularam a cerca, nunca imaginaram que receberiam o troco depois que a velhice torrasse o tesão pelas mulheres das madrugadas.
O marido de Connie não foi mais ao bar com vergonha dos amigos e o de Rute voltou para o interior. Os filhos dizem que as mães enlouqueceram.
A tia carismática de Rute teve um engasgo de nervos e os parentes de Connie, membros da igreja da moda, continuam ofertando muito dinheiro para que o pastor interceda junto a Jesus para tirar o capeta do corpo da prima.
As duas se divertem fingindo que são lésbicas. Os filhos ficaram chocados, mas os netos – “horrizei, cara! Minha avó é muderna” – fizeram uma música para elas e estouraram na parada de sucesso.
Simpatizantes, elas freqüentam bares GLS contaminadas pela alegria dos novos amigos.
Hoje, se interrompem, completam as frases uma da outra, mas com um olhar açucarado de cumplicidade e afeto.