UM DIA, UM HOMEM (1990)

Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva

 

       Quanto mais juras-mentiras ele dizia, mais excitada ela ficava. Ela, 45 anos, era toda ouvidos de adolescente-dos-anos-cinquenta. O marido não lhe falava mentiras, muito menos verdades. O abraço aproximava-o de suas pernas, que trêmulas davam-lhe ninho. Lembrou-se do primeiro baile quando jurara que o namorado estava com uma garrafa de coco-cola no bolso.

    "Você está linda!"

Ela sorria e ele continuava.

    "Por que não te conheci antes?"

    "Como você pode ser tão sedutor assim? Você tem consciência de seu poder de sedução?"

    "Eu? Te devolvo a pergunta. Vamos, me diga, você tem consciência de seu poder de sedução?"

    Ela balançou a cabeça com um sorriso de perdedora. Ele era irresistivelmente invencível.

    Boca com boca, vontade com vontade, um abraço apertado com parafusos de desejos há muito reprimidos.

    "Estou te querendo minha querida. Veja como eu estou te querendo".

    Ele sabia como fazer qualquer mulher feia bonita, seios caídos no lugar, abdômen flácido rígido, cabelos opacos brilhantes, celulites invisíveis.

    "Você é demais. Estou arrebentado por dentro."

    Levantou-a no ar.  Ajoelhou-se a seus pés e abraçou-lhe os quadris. Mais jura-mentiras e ela era só beleza, linda, iluminada, um corpo ficticiamente escultural.

    Na cama, ele se derramou dentro dela várias vezes e aquela secura macabéa encharcava-se de prazer, navegava no amor gemido,furava ondas de orgasmo, repousava na praia de seu peito coberto de pelos prateados, Depois do amor, uma bebida gelada e uma conversa fiada.

    "Minha mulher sofre de depressão" / "Meu marido de repressão" / "Nós nunca fazemos amor" / "Nem nós" / "Minha mulher é desequilibrada" / "Meu marido não tem tempo para nada" / "Ela  fala demais. A conversa dela me cansa" / "E o meu marido que nem conversa. Lá em casa não há diálogo" ? "Não me separo por causa de meus filhos"/ "Eu também" / "Minha mulher não gosta de meus amigos" / "Meu marido detesta minha família" / "Meu... / "Minha... / "Meu.../ "Minha... / "Meu...

    "Me belisca. Quero ver se estou sonhando, Quero ver se estou viva, se isto tudo é verdade."

    "Eu não vou te esquecer nunca. Me telefona?"

    "Não."

    "Telefona, vamos. Promete?"

    "Tenho medo."

    "Medo de que?"

    "De me envolver com você."

    "Que ótimo. Isso vai ser ótimo. Então eu te telefono. Te telefono amanhã."

    "E se meu marido atender?"

    "Eu peço para ele te chamar."

    "Você é louco."

    Ele beijou-lhe um seio, depois o outro.

    "Seus seios são lindos"

    Ela beijou-lhe o membro teso e alisou-lhe os testículos. Ele gemeu de prazer. Fizeram amor outra vez. Ele era masculinamente doce.

    "O que você quer que eu faça, minha querida. Me diz, me ensina o que você gosta. Eu quero te fazer feliz."

    Ela não soube responder. Fizeram amor. Fizeram amor, a a a a a a a a a aa a a a a a a a a a a a mor.....

    Ela fingiu dormir. Ele beijou-lhe os pés.

    Vestiram a roupa apressadamente. Tinham cada um compromisso social.

    Ela foi para casa medrosamente feliz. A secura dera lugar à umidade. O marido recebeu-a de cara boa e não pediu satisfação pelo atraso. Ela disse que o dentista atrasara, que o pneu furara e que, além de tudo, não conseguira o livro que o filho pedira.

    À noite, no jantar, a anfitriã disse-lhe que ela estava linda, mas apressadamente corrigira, pois ambas sabiam que ela não era uma mulher bonita.

    "Você está tão bem! Você está irradiante! Não sei explicar o que é."

    Ela bem que sabia o que era. Sabia que a felicidade dava beleza ao semblante e sentiu-se lindamente feliz.  Até aquele momento, não fizera outra coisa a não ser repassar, na mente, as imagens daquele fim de tarde. Voltava a fita-pensamento daquele vídeo, revia detalhes, ouvia, outra vez, partes selecionadas do diálogo, fazia parar as cenas mais interesantes, olhava aquele rosto sedutor, aquele corpo, aquela barba macia, aqueles olhos, aquele....

    O marido, como era de costume, já havia se enturmado com um grupo de outros maridos. Falavam sobre a bolsa de valor, a copa União, os novos modelos de carro, o novo pacote fiscal, a Constituinte, a UDR...

    Ela, no meio das mulheres, ouvia o caso da empregada, o caso do chofer, o caso do judô do menino, do balé da menina, o caso da aula de inglês, o caso da competição da natação dos filhos de Judite, o caso do marido, o caso do vestibular do filho da Bebel, o caso da aliança de brilhantes (presente de aniversário de casamento da Jô), o caso da criança, criada, criança, criada, cri-cri, cri-cri, cri-cri....

    Um casal acaba de chegar.

    "Olha lá, Bebel, quem chegou!"

    "Nossa, ele está cada vez mais gatíssimo, não tá Jô?" Ela virou-se para a porta de entrada e lá estava ele. Era ele. Ela ficou surda e muda. Apertou a tecla reward de seu vídeo-cassete mental e parou na semana anterior. Apertou a tecla play e estava tudo registrado.

    Eles se encontraram na saleta do dentista. No primeiro dia, eles conversaram sobre política. Falaram do desgoverno e do desgovernador. Ele disse que gostava de mulheres inteligentes. No dia seguinte, ela caprichou no visual e ele disse que ela estava linda. No terceiro dia, ele pegou-lhe a mão e disse que ela estava mais bonita ainda. Ela deixou sua mão ficar entre as dele e sentiu um prazer adolescente.

    Naquela noite, ela não dormiu. A noite inteira foi só fantasias.    

    No quarto dia, ele não apareceu. Ela ficou triste. Quando saiu do dentista, ele a esperava na porta do edifício. 

    "No meu carro, ou no seu?"

    Ela não sabia o que dizer. Sentia-se nua no meio da rua. Por fim gaguejou.

    "Acho que não devemos."

    Ele fez cara de criança frustrada. Ela não resistiu. Vestiu-se de coragem e disse.

    "Cada um no seu carro. A garagem é minha."

    Ele abaixou a porta da garagem do motel e abriu-lhe a porta do carro. Ela desceu hesitante. Ele alisou-lhe os cabelos e penetrou-lhe os olhos falando doces mentiras.

    Ela apertou a tecla forward  e via os dois movendo-se em ondas na cama do motel. Tudo era prazer, só prazer, muito prazer.

    "Muito prazer."

    "Muito prazer."

    Ela respondera automaticamente, ao ser apresentada a ele por Bebel.

    "Esta é Gui, minha mulher."

     "Muito prazer."

    "Muito prazer."

    Sentaram-se todas, mas Gui preferiu seguir o marido e juntar-se aos homens. Não suportava conversa cri-cri.

    Ela tentou retornar a fita, mas o que via era apenas uma estação fora do ar.

    "Bebel, ele continua cantando todo o mundo?"

    "Se continua? Está cada vez pior. A última que ele cantou foi a Bete, mas ela disse que não quis ser mais uma na sua lista."

    Ela não se conteve e entrou na conversa.

    "Que bobagem de Bebel! Que garantias ele teria de que não seria também mais um na lista dela? Afinal de contas, ele é um charme e acho que ela não deveria descartá-lo assim não."

    Disse isso com uma ponta de inveja, ou melhor, com uma lança de inveja. Bete, além de bonita e inteligente, era descasada, disponível, independente,

    As outras riram, concordando com a sua observação. Bebel reafirmou que ele era realmente muito paquerador, o que diexava Bete com medo de ficar envolvida e sofrer. Ela admitiu que era arriscado.

    Jô insistia no assunto.

    "Bebel, conta o caso de Nova York."

    "Ah! É mesmo. O ano passado ele combinou que ficaria conosco em Nova York, mas só chegou dois dias depois do combinado. Sabe o que aconteceu?"

    "Perdeu o avião por causa de uma amante?"

    "Não. Quase. Conheceu uma mulher no avião e ficou dois dias com ela em um hotel antes de ir para o nosso apartamento. Ele é muito porra-louca!"

    Ela voltou o filme novamente. Havia algo errado. Problemas de sintonia? Seria aquele um filme pirata. As cores estavam esverdeadas (pelo ciúme), a imagem estava embaçada (pela dor), cheia de chuviscos (de lágrimas).

    Daquele dia em diante, não conseguiu mais ver o filme com nitidez.

    Ele não telefonou como combinara. Ela criou coragem e ligou dois dias depois. Ela custou a identificá-la e tratou-a como uma desconhecida, com pouca intimidade. Ela perguntou se havia alguém perto dele. Ele disse que não. Ela disse que estava adolescentemente apaixonada por ele. Ele riu e disse que achava ótimo. Ele pediu desculpas, mas tinha que desligar. Um grupo de amigos o esperava para jogar tênis. Ela pediu desculpas por tê-lo incomodado e desligou.

    Ele jamais telefonou. No dentista, ele não foi mais. Ela ficou ainda mais feia, mais seca, mais macabéa. Os cabelos sem brilho, os seios estriados, o abdômen flácido, a alma carcomida pela paixão.