PAIVA, V.L.M.O. O lugar da leitura na aula de língua estrangeira Vertentes. n. 16 – julho/dezembro 2000. p.24-29

O LUGAR DA LEITURA NA AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

 

Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG)

  

Este texto discute o lugar da leitura na aula de língua estrangeira, defendendo que essa habilidade deve estar presente no ensino de forma integrada com as demais habilidades. O texto tenta rebater os argumentos que são geralmente levantados para se priorizar a ênfase na leitura e chama a atenção para o fato de que, em outras partes do mundo, o foco das preocupações da política de ensino de línguas estrangeiras tem sido o multilingüismo e o desenvolvimento das habilidades orais.

  Abstract

 

This article discusses the place of reading in foreign language classes, advocating that reading should not be taught in isolation, but integrated to the other skills. This text is also an attempt to refute the arguments that are usually employed to disregard oral skills in favor of reading. It calls attention to the fact that, in different parts of the world, the main concern in foreign language teaching politics has been multilingualism and the development of oral skills.

Key words: foreign language teaching; reading; oral skills

 

A prioridade do ensino de leitura em língua estrangeira é uma questão que vem gerando polêmica desde a década de 70 e que foi reacesa com a publicação dos parâmetros curriculares para o ensino fundamental. No Brasil, os acadêmicos ligados à área de ensino de línguas estrangeiras se dividem entre os que defendem o ensino de língua estrangeira (LE) de forma global, integrando todas as habilidades, e os que acreditam que a única habilidade que pode ser ensinada com sucesso é a leitura,

Curiosamente, essa discussão não parece fazer parte das preocupações dos educadores de outros países. O resto do mundo, pelo que tenho observado em congressos internacionais, continua discutindo a necessidade de um ensino mais comunicativo, voltado para a interação oral. Essa opção se fortifica com a globalização e a ênfase nos estudos culturais. Svetlana Ter-Minasova, por exemplo, abriu a 32ª reunião anual da Associação Internacional de Professores de Língua Inglesa como Língua Estrangeira (IATEFL), em abril de 1998, dizendo que há uma crescente demanda na Rússia para se aprender inglês para comunicação desde que o contato com o mundo se tornou possível. Sua palestra teve como tema The socio-cultural aspect: a fundamental ingredient of ELT. Reproduzo abaixo o resumo de seu trabalho:

The problem of teaching the English language as a means of communication is especially topical for Russia where contacts with foreigners were prohibited for so many years. Consequently ELT was oriented mostly on teaching reading and grammar, and modern European languages were taught as dead languages. Nowadays the urgent need for communication, especially for learning speech production skills, has led to the idea that the actual use of language is impossible without the background knowledge of the world of the users of this language, their culture in a broad anthropological sense of the word denoting the way of life, cultures, traditions, ideas, beliefs, national characteristics, etc. Socio-cultural structures underlie linguistic structures. Language reflects socio-cultural structures and relations because it refers to objects of reality through concepts. The socio-cultural ingredient of language is very important and a language cannot be taught merely as a list of meanings of separate words and rules of grammar.

 

Chama atenção em seu resumo o fato, ressaltado em sua palestra, de que restringir o ensino de línguas modernas à leitura e à gramática é estudar essas línguas como se  fossem línguas mortas. Ter-Minasova não foi a única a insistir na importância das habilidades orais durante o evento.

A expectativa de um maior contato com o exterior é motivo suficiente para se desejar o ensino de inglês para a comunicação. Vale lembrar que bem antes do fenômeno da globalização, a China, com todas as restrições políticas, que ainda persistem, já investia no ensino de línguas (francês, inglês, alemão, japonês e russo) através de programas de rádio e televisão. Paiva (1995:183) relata que

Programas de universidade aberta através de rádio e televisão universitárias (incluindo cerca de 700 institutos locais e centrais de transmissão e 1500 estações em áreas rurais sob o controle da Rádio Central e da TV Universidade) oferecem cursos variados de língua inglesa: treinamento de professores, inglês comercial, inglês para hotelaria, etc. A universidade aberta, de uma certa forma, tem tornado a língua inglesa popular na China. Outras línguas também são ensinadas e os governos locais têm incentivado os cidadãos a aprender línguas estrangeiras como parte do esforço para promover a abertura de suas regiões para o mundo. (Paiva,1995:183)

 

            O multilingüismo é também preocupação de vários países. Na África do Sul a nova política educacional garante o ensino de várias línguas com um reconhecimento explícito de que “o multilingüismo individual e social é uma norma global” e os alunos têm o direito de aprender duas ou mais línguas a sua escolha. (http://polity.org.za/govdocs/misc/ langpol. html). Nos Estados unidos. Genese e Cloud (1998:63) discutem, em artigo publicado na ASCD (Associação para o Desenvolvimento de Currículo), a importância do multilingüismo. Dizem eles:

O sucesso nos negócios não depende apenas da habilidade de se comunicar, mas de uma compreensão astuta das visões e valores dos outros. Promover a competência em outras línguas e culturas como parte da educação básica é uma questão de sobrevivência econômica.

A aldeia global é aqui. As tecnologias avançadas reduziram enormemente as barreiras de comunicação no mundo inteiro. Além disso, o acesso à informação usando tecnologias avançadas, o marco da sociedade pós industrial, é crucial para a segurança no trabalho. Embora as tecnologias emergentes expandam a comunicação e o acesso à informação, elas não diminuem a necessidade de competência lingüística. Ao contrário, proficiência em múltiplas línguas permite que as pessoas tirem maior proveito dos avanços tecnológicos. Pessoas multilíngues podem se beneficiar mais da era da informação.

(...) a proficiência em outras línguas permite que as pessoas expandam seu mundo. A comunicação leva a maior compreensão intercultural e a tolerância. (tradução minha)

 

Apesar de toda a tendência mundial caminhar para um ensino em que a língua é vista como poderoso instrumento para as relações entre as pessoas e entre as nações, um grupo de renomados pesquisadores em Lingüística Aplicada insiste na priorização no ensino da leitura, deixando em segundo plano as habilidades orais.

Não há a menor dúvida de que a leitura é um dos componentes mais relevantes no ensino de uma LE. Além disso, a leitura é a maior fonte de exposição ao idioma em contextos como o nosso, onde há pouco contato com falantes nativos. Pesquisa realizada na UFMG com alunos bem sucedidos do curso de Letras da UFMG revelou que a estratégia individual de aprendizagem mais utilizada por esses aprendizes é a leitura (Paiva, 1994), o que demonstra a necessidade de se buscar espaço para as habilidades orais na sala de aula, pois dificilmente os aprendizes encontram oportunidades para exercitar a fala.

            Na segunda metade da década de 70, teve início no Brasil o Projeto Nacional de Inglês Instrumental em Universidades Brasileiras tendo como foco a pesquisa sobre o ensino de leitura. O trabalho desenvolvido por grupos de professores de universidades brasileiras teve importante papel no desenvolvimento da metodologia de ensino de leitura. Antes do projeto, ouso afirmar que a leitura era vista como mero reconhecimento da representação gráfica de sons, prevalecendo as atividades de leitura em voz alta, seguida de perguntas e respostas em busca de uma reconstrução do texto mediada pela leitura exclusiva do professor. Graças às várias publicações e aos diversos seminários e cursos de atualização de professores de inglês, ampliou-se a compreensão do processo de leitura, reconhecendo-se o papel do leitor na construção do sentido e a importância da leitura crítica.

            A pesquisa sobre leitura teve porém, na minha opinião, um lado perverso. O objetivo inicial do projeto era a leitura acadêmica, tendo como alvo alunos universitários da graduação e da pós-graduação, mas acabou, de forma equivocada, sendo estendido ao ensino médio e fundamental. Vários professores secundários brasileiros abraçaram a idéia como uma opção cômoda, “pouco trabalhosa” e de fácil controle disciplinar.

            Centrar o ensino de inglês no desenvolvimento da habilidade de leitura é ignorar que aprender uma língua faz parte da formação geral do indivíduo como cidadão do mundo e que entender o outro e como o outro interage auxilia nas relações interpessoais.

Ninguém pergunta a ninguém “Em quantas línguas você lê?”, mas “Quantas línguas você fala?” Anúncios de jornais requerem, em profissões diversas, pessoas que falem inglês. Eu nunca vi um anúncio procurando alguém que leia em inglês, mas que fale inglês.

            Os motivos que são usados para defender a ênfase na habilidade de leitura giram em torno de tempo para o ensino, grade curricular, vestibular, falta de qualificação do professor, oportunidades de uso do idioma, e escolas mal equipadas.

            Argumentava-se, até o final de 1996, que havia pouco espaço no ensino básico para línguas estrangeiras e que não havia continuidade desse ensino na grade curricular. Algumas escolas ensinavam uma LE apenas nas últimas séries do ensino fundamental e no ensino médio também não havia continuidade. A presença da LE no ensino médio variava de escola para escola. Umas incluíam a disciplina apenas na primeira ou na terceira série, outras na primeira e na terceira, outras nas três séries.  Hoje, no entanto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada em dezembro de 1996, garantiu o ensino de idiomas durante as quatro últimas séries do ensino fundamental e em todas as séries do ensino médio, ou seja, durante sete anos. Essa decisão resolve também a questão da descontinuidade. Não se pode mais dizer que o tempo na escola é insuficiente para o ensino de LE.

            Um outro argumento para a priorização da leitura é o concurso vestibular das universidades cujas provas de línguas estrangeiras, geralmente, só testam leitura. Sabemos que esse tipo de exame é uma distorção de nosso sistema educacional que transforma a entrada na universidade em um exame de massa, envolvendo milhares de pessoas em busca de poucas vagas. Um vestibular como o da UFMG, por exemplo, recebe, para a entrada na universidade em 1999, cerca de 60.000 candidatos disputando apenas 4.017  vagas. Apesar de toda a qualidade pedagógica das provas, várias habilidades deixam de ser testadas em várias disciplinas. Não é possível testar, na primeira etapa do concurso, as habilidades orais e escritas tanto de língua estrangeira como da materna de milhares de pessoas e nem fazer com que todas elas demonstrem suas habilidades práticas em laboratórios científicos, por exemplo. No entanto, isso não pode sinalizar que essas habilidades não são importantes. O exame vestibular não pode ser visto como o objetivo final do ensino médio, pois isto significaria uma visão empobrecida do processo educacional. O ensino básico não pode ser entendido como mero caminho para o vestibular, mas como espaço privilegiado para a formação da cidadania. No mundo globalizado, ser cidadão do mundo implica, necessariamente, o conhecimento de pelo menos um idioma em todas as suas dimensões.

            Os defensores da ênfase na leitura argumentam que há muitos professores despreparados incapazes de trabalhar com as habilidades orais já que eles próprios não as desenvolveram. Ora, o despreparo de professores não é privilégio da língua estrangeira. A mesma queixa é ouvida entre os profissionais de outras disciplinas. No entanto, a única área que propõe a adaptar o ensino ao nível da falta de qualificação é a de língua estrangeira. A proposta é duplamente equivocada. Primeiro porque desvaloriza o ensino de leitura ao acreditar que ela será desenvolvida por professores despreparados e, em segundo lugar, por se acomodar à realidade em vez de tentar transformá-la.

            Acredito que como lideranças acadêmicas que somos devemos propor programas de educação continuada para melhorar a qualificação dos professores e não uma política de educação que se submeta às distorções do sistema de formação de professores e proponha uma opção de ensino que perpetuará essa má formação. É sempre bom lembrar que os alunos do ensino médio e fundamental cujo contato com o idioma ficaria restrito à leitura são possíveis candidatos aos inúmeros cursos de Letras que existem no país.

            A falta de equipamento nas escolas associada à má formação do professor geram mais um dos argumentos para não se desenvolverem as habilidades orais. No meu entender, escola mal equipada é falta de vontade política. Qualquer comunidade pode se mobilizar e conseguir um aparelho de televisão e de vídeo cassete para sua escola. Nos últimos anos, temos presenciado um esforço por parte de alguns governantes para equipar as escolas com salas ambiente. Mais recentemente, o MEC começou a investir na compra de computadores para fins pedagógicos e a tendência é aumentar o acesso aos recursos multimídia.

            O ProInfo, “programa educacional que visa à introdução das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação na escola pública como ferramenta de apoio ao processo ensino-aprendizagem” (http://www.proinfo.gov.br/fra_conheca.asp?opcao=1101), numa parceria entre o MEC e os estados, previa, para o biênio 97/98, a instalação de 100.000 computadores, capacitação de 1000 professores multiplicadores, 6.600 técnicos de suporte para escolas, e  25.000 professores, abrangendo cerca de 6 mil escolas públicas. O objetivo é, dentre outros, melhorar a qualidade do processo de ensino e aprendizagem e educar para uma cidadania global numa sociedade tecnologicamente desenvolvida. Apesar dos atrasos na implantação do projeto, foram implantados até o momento 6.727 Núcleos de Informática e 23.450 escolas já foram beneficiadas pelo programa. No segundo semestre de 2000 foi lançado edital de concorrência pública para aquisição de mais 21000 equipamentos

            Ações efetivas estão sendo tomadas para a melhoria das escolas. Temos que fazer a nossa parte e acreditar no ensino público, gratuito e de qualidade. Assumir passivamente que a rede de ensino básico é incompetente para ensinar línguas é perpetuar o mito de que só as escolas de idioma são capazes dessa tarefa. Sabemos que há pessoas que passam vários anos em escolas de idioma e mesmo assim não conseguem se expressar na língua estrangeira e nem por isso vamos dizer que aquelas escolas não são competentes. Da mesma forma que se generaliza negativamente a “incompetência” da rede escolar, principalmente a pública, generaliza-se de forma positiva o “bom desempenho“ das escolas de idioma. As duas generalizações são fruto de especulações e não se baseiam em dados concretos. Há exemplos de boa e má qualidade do ensino nos dois sistemas de ensino.

            Outro argumento na defesa do ensino que privilegia a leitura baseia-se na falta de oportunidades de uso do idioma. Ora, se assim fosse, a opção a ser privilegiada deveria ser a compreensão oral, pois no caso da língua inglesa, por exemplo, a população ouve mais canções em língua inglesa do que tem acesso a textos escritos.

            Argumenta-se também que, principalmente na escola pública, poucos terão chance de viajar para outros países e que, por limitações  geográficas, não há oportunidade de interação com falantes de outras línguas, com exceção do espanhol, pela proximidade de alguns estados com países de língua espanhola. Tenho me referido a esse preconceito como o mito da vizinhança. O fato de ter vizinhos falantes dessa ou daquela língua não é garantia de interação. Nos países europeus, o turismo também é privilégio de determinadas classes sociais e, nem por isto, pensa-se em impedir que as classes menos privilegiadas aprendam a falar línguas estrangeiras. Além de reforçar a idéia determinista de falta de perspectiva de ascensão social, esse argumento traz em si uma visão pragmática da educação de que só se deve aprender o que tem aplicação imediata. Se assim fosse, poderíamos descartar grande parte dos conteúdos das várias disciplinas. Não haveria necessidade de serem ensinadas, por exemplo, as operações matemáticas porque a máquina de calcular dispensa esse conhecimento; não haveria necessidade de se ensinar sobre o relógio do sol porque ninguém hoje necessita desse recurso para saber as horas e, assim, poderíamos listar uma série de conteúdos “desnecessários”.

            Além de todos esses argumentos, acreditamos que o som de uma língua não pode estar divorciado de sua aprendizagem. Como lembram Genese e Cloud (1998:64), os especialistas em desenvolvimento da linguagem reconhecem agora que as habilidades – ler, escrever, falar e ouvir – se desenvolvem de forma interdependente e progressiva com o desenvolvimento intelectual. É possível integrar as habilidades. Abordagens como LEA (Language Experience Approach), por exemplo, propõe que os próprios alunos criem o texto e que o produto final seja compartilhado entre grupos, desenvolvendo a leitura e a escrita simultaneamente. 

            Os avanços tecnológicos possibilitam trazer para a sala de aula situações de interação real. O software I-phone, por exemplo, permite que duas pessoas conversem através do computador com som e imagem. Pode-se argumentar que a Internet é privilégio de poucos, mas é bom lembrar que a televisão demorou 26 anos para atingir 50 milhões de pessoas e a Internet apenas quatro. O número de usuários da Internet no Brasil cresce na taxa de 50% ao ano. O Brasil, em dados de 1997, ocupava o décimo-nono lugar mundial em número de usuários e, em pesquisa realizada em de 1999, já ocupa o sétimo. (http://www.deerydesign.com/didUknow/chart/top15.htm).

Interessa aos governantes que todos tenham acesso às novas tecnologias e acredito que todas as escolas, em breve, terão acesso aos recursos da Internet. É preciso acreditar no futuro, na possibilidade de mobilidade social e na educação como agente transformador da sociedade e da realidade, evitando fazer da política educacional um instrumento de manutenção de privilégios de casta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GENESE, Fred & CLOUD, Nancy. Multilinguism os basic. Educational Leadership.

      v. 55, n. 6. Mar. 1998. p.62-65

PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira. Input Organization. In: LEFFA, Vilson.

     Autonomy in language learning. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1994.

     p. 311-22

PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira. A China vista por uma professora de língua

     inglesa. Atualização. Ano XXV, n. 254, mar/abr, 1995. p.181-5

TER-MINOVA, Svetlana. The socio-cultural aspect: a fundamental ingredient of ELT. 32nd

     International Annual Conference UMIST, Manchester, UK. Cconference Programme.

     1998. p.49

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