Lugar de
menino e cachorro é debaixo da mesa
Vera Lúcia Menezes de
Oliveira e Paiva
Quando
surgi, minha mãe escondeu sua gravidez indesejada sob um capote de frio. Minha
irmã foi repreendida quando pediu a uma vizinha para ensiná-la a tecer um
sapatinho de tricô assim que soube da novidade. Aquele era um assunto proibido.
Meu pai se preocupou com as doenças de minha mãe que lhe minavam todos os
centavos e com as despesas de mais uma criança
Quando
nasci, meu pai saiu do quarto e foi dormir na cozinha. Não tolerava meu choro e
me queria bem distante. Minha mãe não teve alternativa a não ser me dar o peito
e passar noites acordada. Apelidaram-me de Mamãe Dolores, personagem de O Direito de Nascer, novela da época na
rádio Nacional. A mãe preta passou a novela toda chorando e eu a substituía
nessa arte, quando a novela acabava, ao longo da madrugada.
Durante
toda a minha vida, me lembraram que nasci por descuido. Não sei se sou filha de
camisinha furada ou de erro de tabela. Não sei se sou filha de obrigação ou de
prazer. Se minha mãe escondia a barriga debaixo do capote, talvez fosse de
vergonha por exibir o fruto do prazer ou da obrigação de servir ao marido. Nunca
lhe perguntei.
Na infância fui proibida de brincar com
meninos-homens. Segundo meu pai, homem nenhum presta. Carnaval nem pensar, pois
havia o risco de alguém passar a mão em minha bunda. Calça comprida era traje
indecoroso, shorts e maiô só por cima do cadáver de meu pai. Aos domingos, meu
pai me levava ao cinema e minha mãe ficava em casa, pois não gostava de lugares
fechados. Acho que era uma desculpa para me ver à distância.
Meus companheiros foram o cachorro, os livros,
e o pé de goiaba. Com o cachorro, eu jogava bola e reclamava de minha mãe.
Subia no pé de goiaba acompanhada de livros de histórias da carochinha, do
Almanaque Tico-Tico com Bolão, Reco-Reco e Azeitona. Sentada lá em cima, ficava
horas lendo e comendo goiabas Comendo goiabas e lendo.
Como eu tinha o cabelo escorrido, me falavam
que eu era filha de índio e que havia sido deixada por eles no portão de casa.
Quando entrei para a escola, comecei a estudar as tribos e fiquei pensando
“puxa, aqueles índios devem ter andado muito até achar aquele bairro da zona
norte para me largar”. Nunca tirei essa história a limpo. Coloquei na minha
cabeça que eu era uma princesa e que alguma bruxa me colocara naquela casa em
que tudo era proibido para se vingar da família real, mas que um dia a verdade
seria revelada e eu usaria roupas bonitas e iria para o Rio de Janeiro conhecer
o mar. Toda princesa precisa passar por maus momentos até ser feliz para
sempre.
Cala a boca menina. Lugar de menino e cachorro
é debaixo da mesa. Você não sabe o que está falando. Fecha sua boca. Não fala
nada. Pare de falar bobagem. Não fale o que você não sabe. Você está errada.
Não é nada disso. Cala a boca.
Falar era meu esporte predileto, mas em minha
casa só havia adultos. Quando meus pais recebiam visitas, eu era mandada para o
quarto, pois criança não entra em conversa de adulto. Sempre que eu tentava
participar das conversas, alguém dizia, “lugar de menino e cachorro é debaixo
da mesa” e era para lá que eu ia sempre que cantavam parabéns para mim no meu
aniversário.
Como eu odiava aquele ritual. Espezinhavam-me o
ano inteiro, mas naquele único dia eu era o centro das atenções. Era só começar
o “parabéns para você” que eu, para
desespero de minha mãe, corria para debaixo da mesa. Todo ano era a mesma
coisa. Pediam para eu soprar as velas e não dar vexame, mas eu sentia tanta
vergonha que acabava me refugiando debaixo da mesa. Não entedia porque minha
mãe ficava tão brava, afinal lugar de menino e cachorro era debaixo da mesa.
Os passeios de minha família eram sempre na
casa de parentes no mesmo bairro. Íamos à pé. Os adultos conversavam,
conversavam e eu ficava sentada em um canto com a boca fechada, pois criança
não participava de assunto de adulto. Voltava morrendo de sono. Pedia colo, o
que era sempre negado. Um dia eu estava com tanto sono que, distraída, bati com
a cabeça em um poste. Não sei o que doeu mais, a pancada ou a braveza de minha
mãe. “Cabeça tonta, não olha por onde anda...”
Minha irmã ficou noiva quando eu tinha sete
anos. Um amigo do noivo me pegou no colo e me disse que iria se casar comigo. Achei
que era um herói de minha história de princesa. Esperei aquele moço por tanto
tempo, mas ele nunca voltou para me salvar daquela casa. Aquele moço foi um dos
poucos adultos que conversou comigo e não me mandou para debaixo da mesa.
Minha irmã casou-se dois anos depois do
noivado. Após a cerimônia no cartório, os padrinhos foram para minha casa
brindar com uma bebida que borbulhava. Devia ser algo baratinho, tipo Cidra,
pois meu pai era homem pobre. Eu fiquei toda alegre ao ver a sala cheia de
gente bonita e, assim que apareci, fui expulsa, pois estava suja de terra do
quintal. No planejamento da festa, esqueceram de mim e não havia lugar para
criança. Fui me juntar ao cachorro no fundo do quintal. Naquele dia não havia
lugar debaixo da mesa para nos dois.
Na escola, minha atividade preferida era
conversar, mas a professora se vingava subtraindo pontos na nota de
comportamento e eu apanhava em casa. Eu era aluna nota 10, mas adorava
conversar. Era uma tortura levar o boletim para minha meus pais a cada final de
mês. Às vezes minha mãe ralhava, mas, na maioria das vezes, me batia e eu fazia
xixi na roupa de tanto medo e dor. O calor da urina descendo pelas minhas
pernas aquecia meu coração apunhalado pela frieza do desamor de minha mãe. Eu
tinha tanta pena de mim! Adorava fingir que era manca. Andava mancando e sentia
a maior alegria quando alguém na rua me olhava com pena. Era o jeito de
conseguir alguma compaixão para recompensar a afetividade aleijada.
Eu prometia para mim mesma que não conversaria
na sala de aula, mas o prazer do bate-papo era maior do que o medo das surras.
Eu continuava a conversar. Para me castigar, a professora me colocou sentada ao
lado de um menino-homem. Adorei conversar com aquele menino. A outra professora
me colocou na fila dos atrasados e lá continuei no bate-pao, pois encontrei
outros amantes da fala. Passei o resto do ano na fila dos atrasados, apesar de
tirar notas boas. Entre curar o ego ferido e ficar com os colegas de conversa,
optei pelos últimos. Nunca pedi para sair dali. Minhas notas me diziam todo mês
que eu não pertencia àquela fila por direito, mas apenas por prazer.
Resolvi escrever um diário para poder desabafar
e reclamar do desamor de minha mãe, mas ela leu e, como castigo, me pôs a lavar
o chão. Foi uma cena de gata borralheira. Aquela cozinha pequena parecia o
salão de um clube. Eu fiquei horas esfregando o ladrilho e puxando a água.
Minha mãe passou a vida reclamando de minhas inconfidências. Ela nunca me perdoou
por não amá-la. Nunca mais escrevi no diário, pois não havia como escondê-lo.
Minha mãe era onipresente, era um Big
Brother sempre atenta aos meus movimentos e à minha escrita.
Um dia ganhei uma caneta esferográfica e para
testar aquela nova maravilha escrevi a palavra AMOR no alto de minha coxa
direita. Mal sabia eu o que me esperava. Naquele dia, tive que experimentar uma
roupa que minha mãe resolvera fazer para mim, reformando um vestido velho de
minha irmã. Quando ela leu AMOR em minha perna, ficou fora de si. Falou,
reclamou, me deu uns tapas e me fez lavar o AMOR. Fiquei muito arrependida. Eu
juro que não sabia que amor era palavrão. Na minha casa havia idade para amar.
Só depois dos 16 anos. E amor era coisa apenas para um homem e uma mulher. Minha
mãe não sabia o que era amar um filho, ou o próximo. Passou a vida vigiando a
vida dos vizinhos. Sabia quem dava para quem, quem entrava ou saia da casa de
quem, quem bebia e batia na mulher, quem traía o marido, quem fez aborto, quem
jogava à noite toda, e até os horários das visitas do vigário ao Rendez-Vous na
casa da vizinha.
Minha infância era um tédio. Não podia brincar
na rua, pegar sereno, ir à casa de outras crianças e, raramente, alguém brincava
comigo. Era proibido pegar as jabuticabas dos galhos que invadiam nossa casa sobre
o muro do vizinho. Tudo que eu fazia estava errado e minha mãe ora passava
sermão, ora me batia. Eu levantava pedindo a Deus que me ajudasse a agradar
minha mãe e pensava “por qual motivo vou apanhar hoje”. Um dia, li no jornal
que a folha de uma planta chamada “comigo-ninguém-pode” matava. No quintal de
nossa casa, perto do pé de goiaba, havia uma daquelas plantas. Fiz a
experiência, mas não deu certo. Minha boca se feriu, mas não consegui me livrar
da infância.
No porão de minha casa havia uma coleção de
livrinhos de bolso e de fotonovelas, todos adquiridos em banca de revistas e
leituras proibidas para uma menina de 10 anos. Lia tudo escondido. Fumanchu e a Deusa do Fogo. Eu lia fotonovela – Capricho, Ilusão – romance de
bolso, contos de fada, anúncio de jornal, revista O Cruzeiro, a Manchete, a
revista do Rádio, ouvia a Rádio Mayrink Veiga e a Rádio Nacional. Lias as
colunas da Dona Ivone Botelho no Estado de Minas. As revistas Capricho e Ilusão
mostravam sempre a mocinha pobre que engravidava do mocinho rico. Sofria, era
rejeitada e acabava feliz. Já mocinha, associei-me a bibliotecas públicas e lia
tudo que encontrava pela frente. A leitura me impedia de enlouquecer com a
repressão.
Um dia o filho da vizinha entrou para o
exército e ficou tão bonito vestido de soldado que me encantou. Eu devia ter
uns 13 anos. Saíamos de casa pela manhã no mesmo horário. Ele ia para o quartel
e eu para o ginásio. Passamos a olhar um para o outro, mas nunca sequer
conversamos. Um dia minha mãe percebeu o olhar e foi até a esquina nos
observar. Ele subia a rua em direção ao quartel e eu descia para pegar o
ônibus. Havia certa sincronia. Depois de andar mais ou menos uns 20 metros, cada
um em uma direção, olhávamos para trás e nossos olhos se encontravam atraídos
por alguma cumplicidade hormonal. Naquele dia, minha mãe interceptou nossa
comunicação visual com seu olhar de censura. Eu me senti igual à mocinha
grávida da fotonovela. Preparei-me para ouvir o sermão, mas resolvi fingir que
virara a cabeça por outro motivo. Subi a rua novamente e pedi a minha mãe
dinheiro para comprar uma borracha. Tenho certeza de que ela nunca acreditou
naquela história, mas não disse nada. Eu nunca mais olhei para o soldado
encantado, pois tinha medo de minha mãe. Se ela estivesse me vigiando
novamente, eu não teria como fingir que precisava de comprar outra borracha. O
soldadinho virou um homem e casou-se com a vizinha feiosa. Eu continuava
esperando o príncipe encantado que viria revelar que eu era uma princesa e me
levaria para o Rio de Janeiro. Terminei o curso normal e fui ser professora em
um grupo escolar para orgulho de meu pai. Sua filha era professora e trabalhava
só com mulheres. Estava protegida dos homens.
Cresci acreditando em minha insignificância. O
príncipe desencantado chegou, me engravidou e me levou para o interior, para bem
longe do mar. Meus pasi nunca me perdoaram. Eu nem percebi que aquele homem
também não gostava de me ouvir. Calei a boca a vida toda. Quando criança
enfiava-me debaixo da mesa e, depois de casada, debaixo do marido sempre que
ele desejava. Caladinha.
Ficava enfurnada em casa enquanto o marido
curtia os amigos nos botecos da cidade. Nas poucas vezes que saíamos juntos, eu
não bebia e pouco falava, mesmo na companhia de outras mulheres. Aprendi qual
era o meu lugar. Ganhei certo status.
Ninguém mais me mandava para debaixo da mesa. Sentava-me à mesa com outras
mulheres enquanto meu marido conversava com os homens que ficam reunidos do
lado oposto. As mulheres reclamavam das crianças e dos maridos e falavam mal
das empregadas. Eu não tinha empregadas, mas pensava mal do marido e reclamava
das crianças, para mim mesma, em silêncio.
Outro dia meu marido começou a conversar com o
vizinho em frente de nossa casa e eu me aproximei dos dois. Nosso cachorro fugiu
para a rua e meu marido me disse: “Sua inútil, em vez de ficar ouvindo nossa
conversa, faça alguma coisa.” Fiquei com tanta vergonha do vizinho que tive
vontade de sair mancando ou de comer comigo-ninguém-pode, mas afastei-me em
silêncio na companhia do cachorro. Entramos em casa, o cachorro e eu. Ele ficou
debaixo da mesa, mas eu estou muito velha para me enfiar debaixo de qualquer
coisa, até de marido. A coluna dói e não consigo me abaixar com facilidade. Ainda
bem que, há muito, ele me substitui por uma amante.
Sonho com o dia em que serei o centro das
atenções. Eu adoraria ser carregada pelos moços bonitos de minha juventude, com
o soldadinho em seu uniforme engomado bem à frente, mas não se carrega mais menina
grande sonolenta. Agora usam um carrinho.
Preferia ir à pé, mancando, até o taba indígena de onde fui raptada
quando criança. Será que meu marido vai ficar ao meu lado ou do lado de fora
junto com os outros homens. Lugar de princesa é em caixão de cristal. Será que
o príncipe vai conseguir me achar? O vigário vai aparecer ou será que ele ainda
vai ao Rendez-vous?
Dezembro
de 2006.