PAIVA, V.L.M.O. Metáforas Negras. In PAIVA, V.L.M.O. (Org.). Metáforas do Cotidiano. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p.105-119METÁFORAS NEGRAS
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
Ao trabalhar com metáforas que se utilizam de signos que representam a cor negra, pretendo demonstrar como as metáforas que chamarei de Metáforas Negras introjetam no falante o preconceito racial/social. Essas metáforas fazem parte de nosso sistema conceptual e seu uso intenso faz com que o falante incorpore, e passe a considerar como seus, valores preconceituosos que permeiam a linguagem.
A METÁFORA SOB A ÓTICA DA PRAGMÁTICA
A interpretação da metáfora está ligada às idéias de denotação e conotação, ou seja, à significação com valor REFERENCIAL e à significação associada a valor EMOCIONAL. Assim, a expressão "O dia hoje está negro" teria como sentido denotativo "um dia sem sol, com nuvens escuras" e como sentido conotativo ou metafórico "um dia cheio de problemas, aborrecimentos ou tensões". Um bom exemplo dessa ambigüidade pode ser encontrado em acontecimento recente - a devolução de Hong Kong à China. Segundo Lu Minjun (em mensagem eletrônica enviada ao grupo de discussão TESL-L em 4 de julho de 1997), o jornal China News Digest de 2 junho de 1997 reportou que o Ministro de Exterior da China, Qian Qichen, encontrou-se com o Secretário do Exterior Inglês, Robin Cook, em Hong Kong, no dia 30 de junho de 1997, poucas horas antes da transferência. Como estava chovendo, Cook disse a Qichen: "Peço-lhe desculpas por ter trazido o clima britânico comigo". Qichen respondeu: "Amanhã será um agradável dia de sol". Na realidade, no dia 1º de julho choveu em Hong Kong e em Pequim. O secretário Britânico estava usando o sentido literal e usava o tópico "tempo" como recurso fático, mas o colega Chinês optou pelo sentido metafórico. Segundo Minjun, o tempo na China é usado metaforicamente para expressar estado mental, especialmente em casos onde o confronto direto pode causar problemas. Os tópicos fáticos na China incluem famílias, preços, cidade natal e, algumas vezes, empregos.
Levinson (1983:151) nos lembra que as metáforas estão intimamente ligadas às parábolas e aos provérbios, pois podem ser entendidos tanto no sentido literal como no sentido metafórico. Paschoal (1984:58:59), na mesma linha de raciocínio, diz que "como o provérbio depende do contexto de enunciação para ser intepretado, fora do contexto ele tem um potencial semântico aberto semelhante aos dêiticos". Ela nos dá como exemplo o provérbio "Mais vale um pássaro na mão que dois voando", onde a palavra pássaro funcionaria como um dêitico, cujo referente seria fornecido pelo contexto. Assim, o provérbio poderia ser, segundo Paschoal, interpretado como: "Assim como é melhor ter um pássaro na mão do que tentar ter dois e ficar sem nenhum, também é melhor ter um ser X (+ animado ou - animado) do que tentar ter um ser X melhor, ou dois seres X, e ficar sem nenhum". Paschoal (1984:59)
Ao construir essa interpretação genérica, Paschoal tenta provar que o provérbio mantém dois níveis de significação. No primeiro nível, pássaro conserva seu sentido literal e no segundo nível, seu sentido será pragmaticamente construído.
Seguindo o raciocínio de Paschoal, diríamos que o provérbio, "Vocês que são brancos que se entendam", num primeiro nível, teria a palavra brancos se referindo a seres (+ humanos) brancos. Esta fala pressuporia um falante não-branco, provavelmente de cor negra. No segundo nível, a palavra "brancos" ficaria vazia, seria um dêitico dependente de um contexto para que seu referente possa ser resgatado. Agora, o falante não precisa ser necessariamente negro. 0 falante poderá ser branco e o provérbio terá, neste segundo nível, uma interpretação genérica, semelhante a "Assim como negros não devem participar de assuntos/problemas dos brancos, também é melhor que eu (sujeito da enunciação) não participe do problema de vocês (dêitico de referência exofórica).
Segundo Levinson (1983:156),
Uma abordagem pragmática será baseada na pressuposição que o conteúdo metafórico dos enunciados não será obtido por princípios de interpretação semântica; a semântica fornecerá apenas o significado literal ou convencional das expressões envolvidas, a partir daí, somando-se os detalhes do contexto, a pragmática terá de fornecer a interpretação metáforica.
Uma abordagem pragmática possível seria o estudo da metáfora a partir das máximas de Grice (1975). A metáfora seria, então, o produto de uma violação intencional da "máxima da qualidade" que se resume em "não afirme o que você acredita ser falso".
Assim, quando alguém diz "Ele é um negro de alma branca", este falante está produzindo um enunciado falso, pois não se atribui cor à alma. No entanto, ao fazer uma afirmação falsa, o falante tem a intenção de dizer outra coisa, como, por exemplo, "ele é um negro que possui qualidades próprias das pessoas brancas".
Não descartando o estudo das metáforas por outras áreas do estudo da linguagem, caberia à Pragmática estudá-la, tendo como objetivos aqueles sugeridos por Levinson (1983:161). São eles:
1. identificar as metáforas;
2. descrever como elas são construídas e reconhecidas;
3. descrever suas condições de uso;
4. descrever como os contextos restringem as interpretações.
Eu acrescentaria que, no caso das metáforas veiculadoras de preconceitos, caberia à Pragmática descrever o processo como as metáforas são construídas e incorporadas ao repertório dos falantes, até mesmo daqueles que sofrem os preconceitos por elas difundidos.
A LINGUAGEM E SUA FORÇA
Segundo Sapir,
... os homens não vivem sozinhos nem no mundo objetivo, nem no mundo das atividades sociais, pois eles estão à mercê de uma língua particular que é o meio de expressão de sua sociedade (...) ... o mundo real é em grande parte, construído de forma inconsciente, tendo como base os hábitos lingüísticos do grupo.
Whorf (1965), ao defender a tese de que a visão do mundo é determinada lingüisticamente, afirma que o pensamento humano é inexoravelmente controlado por estruturas, das quais não temos consciência. É sob o comando dessas estruturas, que o homem controla o mundo de sua consciência. Segundo Whorf, da mesma forma que o selvagem ignora a lei da gravidade, os homens, do mais simples ao cientista, não têm conhecimento do poder lingüístico.
Bakhtin (1981:195) diz que "toda atividade verbal consiste em distribuir a "palavra de outrem" e a "palavra que parece ser de outrem". Para Bakhtin (1981:121), "o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo".
Bordieu (1982) mostra o papel que as palavras desempenham na construção da realidade, impondo uma visão mais ou menos autoritária do mundo social. Segundo Bordieu, nossas representações mentais afetam a realidade e devem ser levadas em consideração na descrição desta realidade.
Lakoff e Johnson (1980) demonstram, ao longo de seu livro The Metaphors We Live By, que os processos do pensamento humano são amplamente metafóricos. Segundo eles,
... a verdade é sempre relativa a um sistema conceptual que é, em grande parte, definido pela metáfora. A maioria de nossas metáforas evoluíram em nossa cultura através de um longo período, mas muitas nos foram impostas pelas pessoas do poder — líderes políticos, religiosos, comerciantes, publicitários, etc., e pelos meios de comunicação em geral. (p.159-160)
É seguindo a trilha desses pensadores que pretendo demonstrar como a linguagem, através das metáforas e de outros elementos do discurso, introjeta nos falantes o preconceito racial. O falante, de forma inconsciente, incorpora e passa a considerar como seus falsos valores que permeiam a linguagem.
Em uma sociedade preconceituosa, o negro é visto como ser inferior, primitivo, retardado, perverso, desonesto, tolo, possuidor de maus instintos, sujo, irresponsável, preguiçoso, incapaz, etc. Esses preconceitos tornam-se traços semânticos das palavras preto/negro que vão sendo reproduzidos nas inúmeras metáforas que utilizam essa cor.
Kabengele Munanga (1986:15-16) lembra-nos que,
Na simbologia de cores da civilização européia, a cor preta representa uma mancha moral e física, a morte e a corrupção, enquanto a branca remete à vida e à pureza. Nesta ordem de idéias, a Igreja Católica fez do preto a representação do pecado e da maldição divina. Por isso, nas colônias ocidentais da África, mostrou-se Deus como um branco velho de barba e o Diabo um moleque preto com chifrinhos e rabinho.
e continua Munanga,
De acordo com a simbologia de cor, alguns missionários, decepcionados na sua missão de evangelização, pensaram que a recusa dos negros em se converterem ao cristianismo refletia, de fato, sua profunda corrupção e sua natureza pecaminosa. A única possibilidade de "salvar" esse povo tão corrupto era a escravidão. Muitos utilizaram-se de tal argumento para defender e justificar essa instituição. Desse modo não haverá nenhum problema moral entre os europeus dos séculos XVI e XVIII, porque na doutrina cristã o homem não deve temer a escravidão do homem pelo homem, e sim sua submissão às forças do mal. Por isso, foram instaladas capelas nos navios negreiros para que se batizassem os escravos antes da travessia. Em total desrespeito e flagrante violação à religião dos africanos, a preocupação cristã consistia em salvar as almas e deixar os corpos morrerem!
Pouca mudança houve até hoje. A idéia de redenção do negro através do embranquecimento de sua alma ainda se faz presente em nossos dias. Os preconceituosos embutidos nas metáforas perpetuam a escravidão disfarçada do negro e o olhar de piedade do branco para com o ser que ele considera inferior e amaldiçoado.
Até mesmo no momento em que se lembra do negro para homenageá-lo ou defendê-lo, enfatiza-se, na maioria das vezes, os estereótipos criados pelo preconceito, como o exemplo abaixo, cuja autoria preferimos omitir.
Mostrando a alma que é franca
a raça negra é querida
Alma de preto é mais branca
que os brancos "pretos" da vida.
Nessa quadrinha há a pressuposição de que o preto é inferior ao branco. Apesar do uso do dêitico "os" em "os brancos 'pretos' da vida", separando uma parte da raça branca do seu todo e da ausência do dêitico em "alma de preto", no sentido de toda a raça negra, a idéia positiva apresentada no 3º verso é destruída pelo jogo das palavras "branco" e "preto". No 3º verso, a palavra "preto" é sinônimo de raça e, no último verso, a palavra "pretos" significa desonesto, possuidor de maus instintos, etc. O contrário acontece com a palavra "branco(a)". No 3º verso, "branco" significa "pura" e a palavra "brancos" no último verso, significa alguns representantes da raça branca.
A METÁFORA: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Robert Rogers (1978), em seu livro Metaphor: A Psychoanalytic View, divide o processo de pensamento em dois níveis: o nível primário e o nível secundário.
O nível primário é inconsciente, irreal, servindo como veículo para a expressão de idéias, de emoções, em fenômenos como os sonhos e alucinações, enquanto o nível secundário é uma atividade mental consciente, orientada pela realidade, e mais ou menos deliberada.
A metáfora trabalha nos dois níveis. De acordo com o processo primário, o símbolo é igual à realidade, então a metáfora nos dirá, "isto é aquilo" e ao mesmo tempo no nível secundário nos dirá "isto é igual àquilo".
Podemos daí concluir que as metáforas podem ser enganadoras, conduzindo nosso pensamento através de conceitos falsos de analogia e similaridade.
A metáfora tem em si duas mensagens, diz uma coisa querendo dizer outra. Assim quando alguém diz: "A situação está preta", duas idéias, uma verdadeira e outra falsa, co-ocorrem, sendo a idéia enunciada verdadeira e a implícita falsa, porém esta última serve de ícone para a primeira. A expressão "A situação está negra (ou preta)", descreve uma idéia real, mostra que alguma coisa não está bem, está adversa, ruim, etc. A idéia implícita "negro é ruim, adverso", no entanto, é falsa, preconceituosa, introjetada em nossas mentes, como se fosse um atributo da palavra negro.
Vejamos os traços que compõem o conteúdo semântico da palavra negro ou preto.
0 Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de Caldas Aulete nos fornece os seguintes: lutuoso, fúnebre, tenebroso, caliginoso (escuro, tenebroso), infausto, ameaçador, medonho, adverso, inimigo, funesto, pervertido, execrável, horrendo, pavoroso e odioso, apresentando exemplos para quase todos esses sentidos como: negra sina, almas negras, negra morte, negra perfídia, negras cores, etc. Na língua inglesa, o Heritage Dictionary of the English Language apresenta os seguintes traços para a palavra black: evil, sinister, cheerless an depressing, gloomy, angered, sullen, calamitous, grotesque, dirty, etc.
É interessante observar que em uma língua falada na Jamaica, segundo DeCamp ( In Mühlhäusler, 1986: 232), uma palavra de origem africana, "quashie", que significava "pessoa do sexo masculino nascida no domingo" e seu correspondente feminino "quasheha" sofreram mudança semântica, passando a designar o negro de forma pejorativa, como podemos ver abaixo:
QUASHIE
1. a Negro, especially of low class = negro especialmente de classe social baixa.
2. a fool, idiot, stupid man = um homem bobo, tolo, imbecil.
3. a gullible country-bumpkim = um caipira tolo.
4. an irresponsible ne'er-do-well = irresponsável, aquele que nunca consegue fazer nada.
5. a dirty, filthy man = um homem sujo, imundo.
é. a stubborn, pig-headed man = um homem teimoso, cabeça dura.
QUASHERA
1. a prostitute = prostituta.
2. a foolish, ne'er-do-weel woman = uma mulher tola e incapaz.
3. typical name for a mule = nome típico para mula.
Como vemos todos os usos da palavra carregam em si conotações pejorativas e negativas.
AS METÁFORAS NEGRAS
A ironia da questão é ter o próprio negro ou pessoas que se posicionam contra o racismo, agindo como veículos inconscientes de disseminação das metáforas negras e usando-as, muitas vezes, em contextos onde procuram defender a raça e sua cultura. Inúmeras vezes, ouvimos pessoas da raça negra dizendo que "a coisa está preta" ou utilizando o verbo denegrir. Denegrir significa, em seu sentido literal, tornar negro, escuro; enegrecer, escurecer. No sentido metafórico, significa manchar; macular; desacreditar; desabonar; difamar.
Pesquisando as edições da revista VEJA de 1996, encontramos três ocorrências da palavra denegrir. O primeiro de Tutty Vasques (edição 1430 de 07/02/1996, p.67) se refere ao episódio da gravação de um vídeo de Michael Jackson em uma favela do Rio de Janeiro que encontrara resistência do então Secretário Estadual da Indústria e do Comércio do Rio de Janeiro, Ronaldo César Coelho. O secretário carioca considerava que o vídeo poderia "denegrir a imagem da cidade no exterior". Diz Tutty Vasques: "Ronaldo Cezar Coelho deve ter confundido Michael Jackson com Tony Tornado! Até porque denegrir ¾ o mesmo que tornar negro ¾ nunca foi o forte do astro americano, um desnegrido assumido".
No texto de Vasquez, o signo denegrir entra em conflito com os dois significados, o literal e o metafórico, e produz um terceiro sentido onde denegrir gera uma nova metáfora, desta vez positiva, invertendo a metáfora preconceituosa. Desnegrido, o que não é negro, o que não valoriza as raízes negras, passa a ter menos valia e, por oposição, denegrir passa a ter o sentido positivo de assumir com orgulho a negritude. Ao mesmo tempo que Vasquez finge ignorar o sentido metafórico de denegrir, ele traz à consciência do leitor o sentido literal e denuncia o preconceito representado na figura embranquecida de Michael Jackson. Da mesma forma, o movimento negro conseguiu dar à expressão "negro de alma branca" um sentido negativo, desconstruindo a metáfora do preconceito criada pelo branco. O negro de alma branca que originalmente era usado de forma positiva e significava um negro com qualidades do homem branco, agora passa a ser utilizado de forma negativa para designar o negro que não assume a sua identidade negra e quer se parecer com o branco.
As outras duas ocorrências da palavra denegrir foram localizadas em textos relacionados com a polêmica criada pela música do cantor/palhaço Tiririca no segundo semestre de 1996. A comunidade negra pediu a proibição da música por considerá-la ofensiva à raça e várias personalidades se manifestaram a respeito.
No texto Ofensa Rebatida (edição 1455, 31/07/96, p.128-129), o rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista, afirma que "denegrir um povo, fomentar o preconceito racial é ilegal, é imoral" e na Seção de Cartas de 21/08/96, um leitor afirma que "A música de Tiririca não só exterioriza um preconceito racial como é, sobretudo, um achincalhe, uma humilhação. Ninguém pode denegrir alguém, mormente uma raça". Ironicamente ambos utilizam o sentido metafórico de denegrir, que é uma metáfora gerada pelo preconceito, para protestar contra a letra de uma canção que consideram preconceituosa.
Mesmo sabendo que o signo é imotivado e que a palavra denegrir não mais é usada em seu sentido literal, é impossível deixar de associá-la com a palavra negro, presente em sua raiz.
Vejamos outros exemplos de metáforas que se utilizam de signos que representam a cor negra:
1. Henry Correa de Araújo, em um poema em homenagem ao bispo Desmond Tutu, também tropeça na metáfora negra.
Eu não barganharia o ouro da cidade do Cabo
de Pretória ou de Joanesburgo
para dele fazer a mais bela jóia
e dá-la de presente à mulher que amo.
Também não pisaria
a terra dos bantustans
o coração ensangüentado de Soweto
onde se tortura e mata
quem nasceu de um ventre negro
e cresceu com a pele escura.
Como é escura a vida
dos que tombam nas ruas da África do Sul
Como árvores abatidas pelos vendavais.
...............................................................
2. Shakespeare, ato V de Os dois Cavalheiros de Verona, dissemina o preconceito racial ao usar o provérbio,
Black men are pearls
in beauteous ladies' eyes
(Para os olhos da amada, um negro é pérola)
3. Blake, no poema "The little black boy" (O Negrinho), também não escapa do preconceito ao atribuir ao negro uma alma branca.
My mother bore me in the southern wild
And I'm black, but o! my soul is white;
White as an angel is the English child,
But I am black as if bereaved of light.
(Minha mãe deu-me à luz no ermo do sul,
E eu sou preto, mas oh! a minha alma é branca.
Branca que nem anjo é a criança inglesa,
Mas eu sou preto, como que despojado de luz).
4. Provérbios e Expressões Idiomáticas são veículos de grande poder na distribuição da palavra preconceituosa "de outrem e da palavra que parece ser de outrem". Vejamos alguns exemplos em português e em inglês:
- Deus te faca branco p'ra honra de teus pais.
- Black lie = mentira prejudicial, falsidade, perfídia.
- White lie = mentira justificada; afirmação falsa feita com boas intenções (no interesse da paz, reconciliação, etc); mentira inocente.
- "The devil is not so black as he is painted".
(O diabo não é tão preto quanto parece)
- "Under the blanket the black one is as good as the white".
(Debaixo do cobertor o negro é tão bom quanto o branco)
- "Every white hath its black, and every sweet its sour".
(Todo branco tem sua parte negra, e todo doce seu amargor)
- "Preto quando não suja na entrada, suja na saída".
- "Preto não pode entrar na gaiola".
- "Serviço de Preto" = para designar uma tarefa mal realizada.
- black list / lista negra
- black sheep / ovelha negra
- black market / mercado negro
- black hole / buraco negro
- blackmail = chantagem; extorsão ilegal
- black spot = trecho de estrada onde ocorrem muitos acidentes
- a black leg = trabalhador que continua a trabalhar quando os outros estão em greve. Os outros trabalhadores os odeiam e os desprezam.
Se nos reportarmos à literatura, tanto de língua inglesa como de língua portuguesa, para nos restringirmos a essas duas, acharemos uma série infindável de metáforas perpetuando a doutrina simbólica tradicional, para a qual, segundo Cirlot (1981), as raças negras são filhas das trevas, enquanto o homem branco é filho do sol ou da montanha branca polar.
José de Alencar, em sua peça Demônio Familiar, destila forte preconceito racial ao chamar o escravo de "demônio familiar". A personagem escrava é descrita como bobo da corte, ser irracional e irresponsável. Os escravos são chamados de "répteis venenosos que quando menos esperamos nos mordem no coração". Este trecho nos remete ao dito popular "Preto quando não suja na entrada, suja na saída", onde a máxima da qualidade é violada gerando a implicatura conversacional "Não se deve confiar no negro".
No texto de Alencar, uma maldição é lançada ao negro, através de um personagem branco.
Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio da família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (A Pedro) toma: é a tua carta de liberdade; ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tua faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto, e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes.
O negro, ainda hoje, é visto por muitos como demônio familiar. As empregadas domésticas, principalmente as negras, são livres, mas não penetram no seio das famílias e nem utilizam os elevadores sociais. A moral e a lei cobram do negro com mais rigidez do que cobram do branco. Encontramos registro na revista Afinal, de 19 de abril de 1988, que na Escola de Polícia de São Paulo, estaria grafada a seguinte frase: "Um negro parado é suspeito, correndo é culpado". O negro é sempre visto como demônio ou como pobre diabo, ser inferior e infeliz. No folclore encontramos a quadrinha
Pobre preto só é gente
quando vem a noite escura
todos dizem lá vem homem
somente pela figura.
Gostaria de discutir a construção e as condições de uso de dois provérbios, dentre os muitos citados. No provérbio inglês, por exemplo, "The devil is not so black as he is painted" (correspondente ao provérbio "O diabo não é tão feio quanto parece", em português) a mensagem implícita é — o diabo é melhor que o negro, pois ele é mais claro. Esta mensagem é reconstruída através do pressuposto de que "black" está sendo usado em um de seus sentidos negativos. Em uma comunidade lingüística onde a palavra "black" fosse apenas usada no seu sentido de cor em oposição a qualquer cor, sem qualquer conotação negativa, este provérbio, dificilmente, teria sentido. Só o contexto social é capaz de gerar condições de uso e, portanto, de interpretação. O provérbio também não faria sentido em uma comunidade cujo sistema religioso não contemplasse a figura do diabo. A expressão "Preto não pode entrar na gaiola!", por exemplo, só terá sentido se determinadas condições de uso, condições pragmáticas, forem preenchidas. Assim, para que esta exclamação seja entendida como "todo negro que ascende socialmente fica convencido", é necessário que existam as seguintes condições de uso:
1. O falante e o ouvinte devem estar inseridos no mesmo sistema de valores, ou seja, eles devem ter preconceito racial/social contra o negro, além de compartilhar dos mesmos conhecimentos pressupostos. Gaiola, por exemplo, tem que ser entendida como índice de prestígio social e não de prisão, pois só pássaros que têm prestígio são colocados em gaiolas.
2. O negro a quem o falante se refere deve apresentar índice(s) de ascensão social — boas roupas, carro bonito, um óculos da moda, etc.
3. Os interlocutores não desfrutam da amizade do negro a quem se referem, ou já foram amigos dele antes, o que torna a exclamação mais forte.
4. Se o emissor da exclamação for negro, ele deve ser de uma classe social inferior à do negro em questão.
5. Se o emissor da exclamação for branco, não precisa pertencer, necessariamente, à classe baixa.
6. O emissor nutre pelo negro, a que ele se refere, um sentimento de inveja e/ou desprezo.
O sentido, como vimos, é construído socialmente e os preconceitos atuam fortemente nessa construção. Os provérbios, as expressões idiomáticas e as metáforas desgastadas, ou catacrese, penetram em nossas estruturas de pensamento, de forma inconsciente, a ponto de palavras como denegrir/denigrate, não serem mais usadas em seus sentidos literais. A presença do opressor se faz forte na língua. O negro não consegue escapar das armadilhas da linguagem e, como nos lembra Sartre (1965:106), "aprenderá a dizer "branco como a neve" para significar a inocência, a falar de negrura de um olhar, de uma alma, de um crime".
Retomando a hipótese de que a verdade é sempre relativa a um sistema conceptual que é em grande parte definido pela metáfora, a única saída possível seria a criação de novas metáforas veiculando idéias positivas, pois, como afirmam Lakoff e Johnson (1980:157) "novas metáforas, como metáforas convencionais, têm o poder de definir a realidade". Eles explicam que "se uma nova metáfora entra no sistema conceptual no qual baseamos nossas ações, ela irá alterar aquele sistema conceptual assim como as percepções e as ações geradas por ele". Lakoff lembra, só para exemplificarmos, que a ocidentalização das culturas no mundo inteiro está parcialmente ligada à introdução da metáfora "TIME IS MONEY" naquelas culturas.
Sabemos que "as palavras sozinhas não alteram a realidade. Mas mudanças no sistema conceptual certamente alteram o que é real para nós e afetam o modo de perceber o mundo e o modo de agir sobre essas percepções".
Vários trabalhos já discutiram o conceito de negritude, mas nunca é demais lembrar que a consciência de raça começa ao se assumir essa raça, e rejeitar a alma branca. Eu acrescentaria que a tomada de consciência da linguagem é uma possibilidade de deixarmos de ser veículos inconscientes de disseminação da discriminação racial, para passarmos a produtores conscientes de novas metáforas que pouco a pouco possibilitariam a mudança de valores de toda uma civilização.
Gostaria de concluir este trabalho com uma citação de Jean Paul Sartre (1965:99-100), onde ele inverte os valores e usa a metáfora "alma negra" no sentido positivo, no sentido de orgulho da raça.
"O preto que chama seus irmãos de cor a tomarem consciência de si próprios tentará apresentar-lhes a imagem exemplar de sua negritude e voltar-se para a sua própria alma a fim de aí captá-la. Ele se quer farol e espelho concomitantemente; o primeiro revolucionário será o anunciador da alma negra, o arauto que arrancará de si a negritude para estendê-la ao mundo, meio profeta, meio guerrilheiro, em suma, um poeta na acepção precisa da palavra vates".
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
BORDIEU, Pierre. Ce Que Parler Veut Dire. Paris: Fayard, 1982.
CIRLOT, Juan Eduardo. A Dictionary of Symbols. Trad. Jack Lage. New York: Philosophical Library, 1981.
GRICE, H. P. Logic and conversation. IN: COLE, P & MORGAN, J. L. (eds). Syntax and semantics III: Speech Acts. New York: Academic Press, 1975. p. 41-58
LAKOFF, George e Mark Johnson. The Metaphors We Live By. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.
LEVINSON, Stephen. Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
MUHLHÄUSLER, Peter. Pidgin & Creole Linguistics. Oxford: Black Well, 1985.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. São Paulo, Ática, 1986.
PASCHOAL, Mara Sofia Zanotto. 'Metáfora Discursiva' in Linguagem nº 3, Rio de Janeiro, 1984.
ROGERS, Robert. Metanhor: A Psychoanalytic View. Berkeley: University of California Press, 1978.
SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre o Racismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965.
WHORF, Benjamin Lee. Language, Thought and Reality. Cambridge: Mass., M.I.T. Press, 1965