Narrativa coletada por ELAINE FERREIRA DO VALE BORGES (pesquisadora do projeto)
Interesse na produção/no olhar da narrativa pela pesquisadora: abordagens de ensino/aprendizagem de LE
Nome: (não autoriza o uso do nome verdadeiro)
Idade: 27 anos
Escolaridade: 3o grau completo (professora de inglês)
Tempo de aprendizagem da LE: 15 anos (Inglês)
Data da coleta: 04/08/2007

Meu envolvimento com a língua inglesa começou ouvindo rádio, com uns dez, onze anos ou até menos. Conheci George Michael lá pelos dez anos, eu acho, mas só fui entender o que ele dizia anos depois, aos vinte e poucos. Esse momento em que você escuta uma música em inglês e descobre o que ela significa porque já conhece a língua inglesa suficientemente, ou porque está no meio de uma atividade de fill in the blanks na escola de inglês, eu considero muito, muito valioso. Faz você se sentir consciente da língua e da mensagem da música, faz você se sentir capaz de aprender, e faz você se sentir como alguém que está recebendo um presente, uma mensagem que não está mais cifrada. É uma sensação íntima e fantástica de realização pessoal e de vínculo com o outro.

A coisa mais importante que aconteceu comigo no aprendizado da língua inglesa foi descobrir meu amor pela literatura americana e inglesa e por cantores como Bob Dylan e Leonard Cohen e entender o que eles estavam dizendo. A música pop ensina muita coisa a uma pessoa, mais rapidamente, muitas vezes, do que um livro teórico. E isso é muito mágico, muito marcante.

Com o aprendizado da língua francesa, eu acabei tendo acesso a livros sobre a cultura oriental que mudaram a minha vida.

Eu comecei a aprender inglês na escola, como acho que acontece com todo mundo. Todo ano do ginásio a professora de inglês mudava, e todas, sem exceção, começavam com o verbo “to be”, o que para os alunos, era simplesmente odioso. Nós dizíamos “mas a gente já aprendeu isso!”, e a professora nova respondia “a outra professora era a outra professora, eu sou eu.” Nós nos entreolhávamos decepcionados, não havia o que fazer. Um horror. Acho que por isso meus pais acabaram me matriculando numa escola de inglês particular chamada Cultura Inglesa.

Meu tempo na Cultura foi como o de muita gente que conhece o apelido da escola por “Tortura Inglesa”. Era uma tortura. Aulas e mais aulas sobre os mesmos temas, as férias, o que você faria se fosse um milionário. Ou seja, cansativo, chato, sofrido. Pouco espaço para a realidade do aluno, tão propagada hoje nas escolas atuais. Na época da Cultura, mesmo as atividades mais prazerosas que os professores escolhiam eram geralmente chatas, como assistir o filme Baby- o porquinho quando você tem treze, quatorze anos, ou um trecho de um romance americano enlatado que não te diz nada. Uma ou outra professora ainda propunha um U2, e esse era o ápice. As provas eram burocráticas, eu nunca senti que elas eram feitas para mim, para que eu acertasse alguma coisa e mostrasse algo meu. Era frio, distante.

A Cultura Inglesa não me ensinou coisa nenhuma sobre a cultura inglesa. Mas tinha um laboratório onde eu li algumas Seventeen’s e assisti alguns clipes. A música e a curiosidade pelas letras de música me segurou no aprendizado, e também a sensação de descobrir um mundo novo e o prazer de poder se comunicar numa outra língua (sempre gostei de forçar a minha boca com fonemas novos e de descobrir significados dos textos).

Minha melhor professora da Cultura enfatizava a pronúncia, e isso fez uma enorme diferença na minha vida depois, até hoje considero meu inglês razoavelmente bom pelo tanto que ela fazia a gente pronunciar as palavras. Uma vez, numa aula que eu nunca esqueci, a professora fez uma turma de uns doze alunos adolescentes aprender a pronunciar a frase “I love you” da forma correta. Todo mundo dizia essa frase com grande embaraço, porque estava fora do contexto e éramos adolescentes, mas ela não se importava, encenando a frase na frente de todo mundo com uma expressão levemente sexy e pedindo que todos repetissem “I love you”. Aquilo foi marcante.

Nos últimos anos em que, sem chegar até o fim, estive na Cultura, aconteceu aquilo que não se explica direito, das palavras ganharem certa autonomia na sua cabeça e você sentir que o inglês está borbulhando dentro de você. Começar a pensar em inglês, este é sim um momento maravilhoso. Mas a Cultura era cara e burocrática e eu não fui até o fim.

Quando eu entrei na Universidade, no curso de Letras, resolvi estudar a Língua Francesa, afinal eu já sabia um pouco de inglês e achava o espanhol ridículo. Foi um desastre. Era chato, extenso, eu não conseguia chegar a encontrar a saída para dizer qualquer frase simples em francês, tudo era um grande enigma, e os professores, em sua maioria, eram hostis, altamente rigorosos, davam aula contra os alunos, dificultando a vida deles com avaliações e livros, livros e mais livros chatos demais e resumos de livros, provas em que queriam saber qual fruta a Emma Bovary tinha comido no capítulo dois e esse tipo de arbitrariedade. Foi um massacre intelectual e espiritual.

Sofrendo com o aprendizado da língua francesa, me voltei com todas as forças para o inglês. Se a língua francesa me oferecia o chatíssimo Madame Bovary, a língua inglesa me oferecia Shakespeare, Grahan Greene, Saki, Oscar Wilde. Os professores diziam que Balzac era importante, eu não conseguia gostar de Le Père Goriot, e já estava apaixonada por e.e. cummings muito mais do que por Verlaine. Era irremediável. A literatura francesa era obrigatória e tirava o meu tempo, a literatura inglesa era facultativa, me oferecia o prazer de conhecer um mundo novo. A maior parte do curso era sobre o século dezenove, o que não ajudava na sensação de alívio.

Foi uma guerra cultural na minha cabeça. Meus amigos mais velhos criticavam a maneira com a qual os autores franceses eram extensos, usando sinônimos depois de sinônimos ao invés de simplesmente contar como um determinado fato aconteceu. Era verdade. Eu lia livros horripilantemente enfadonhos, e fugia quando tinha tempo para a língua inglesa, onde Fitzgerald me esperava com o Grande Gatsby, eu não precisava sofrer com contos de terror de Maupassant e aulas de realismo fantástico tenebrosas para a imaginação de qualquer mortal. Se alguém encontrou uma cabeleira num armário ou um fantasma em sua cama, nada daquilo tinha a ver com o meu gosto pessoal.

Eu acho o meu depoimento perigoso, as pessoas vão sentir arrepios e dizer que eu sou uma ofensa, uma estudante preconceituosa, arrogante, que eu não posso falar mal dos cânones franceses, por exemplo. Mas eu estou falando de amor pela literatura e de herança cultural. Não vejo como não ser sincera comigo mesma e nem preciso provar os méritos de Flaubert e suas descrições. Eu não me apaixonei pela literatura francesa e ponto final. Nenhum livro de Patrik Suskind, ou Céline fez meu coração bater acelerado quanto quando eu pude ler e.e.cummings. Claro, foi marcante ter lido Samuel Bekett, ter conhecido Rimbaud, Baudelaire, Stendhal, Proust, mas as exceções só confirmavam a regra. Romances escritos no Canadá ou naquelas ilhas estranhas perdidas, com suas tradições de cultura vudu, realmente não eram para mim.

Comecei a dar aulas de inglês por acaso, para fazer algum dinheiro. Eu não sabia o quanto eu falava de inglês, mas não era muito. Só que quando você precisa ensinar uma língua e só se comunicar com ela durante horas do seu dia, você vai aprendendo na marra. Muitas vezes eu abria o livro didático e lá estavam as partes do carro em inglês. Era só ir seguindo a aula, colocando o cd, o aluno quase não desconfiava que eu nunca tinha visto aquilo na vida. Aulas planejadas têm algo de ilusório. Você toma um tempo do aluno em que ele não necessariamente está praticando alguma coisa de verdade. Mas felizmente, também tive a oportunidade de trabalhar numa escola em que as coordenadoras sabiam que a satisfação do professor e o fato dele poder tomar um café com um aluno em inglês ou inventar uma aula diferente segurariam o sucesso de todos.

Aliás, tenho muito a dizer sobre metodologias de ensino de língua. Hoje, estou cansada de seguir treinamentos de escola. As escolas robotizaram os professores. A coordenação cobra que você atenda ao método, use as técnicas, não chegue atrasado com o trânsito de São Paulo, a coordenação enxerga o aluno como um cliente, o aluno enxerga o professor como um empregado dele, como um faxineiro ou choffeur, e o professor, com a sua paixão pela língua, sua história, seu amor pelo idioma e tudo o que pode oferecer, fica perdido, sem poder nem mesmo preparar um fill in the blanks para os alunos, porque seu toque pessoal não é bem vindo, ele precisa seguir a atividade do livro didático, quase sempre. Ele precisa entender que “generosidade”, para os donos de escola, é entender que você não é a estrela da aula, e que você precisa desaparecer e deixar os alunos praticando o idioma o máximo possível, pode até ter algum sentido, mas isso não resume a riqueza de uma aula.

Há escolas dizendo que o próprio exercício de fill in the blanks é inútil, porque as pessoas não fazem isso na vida real. Eu discordo totalmente. Muito do que eu sei de estrutura da língua e de preposição eu devo à Madonna, George Michael, R.E.M e outros.

Os donos de escolas e franquias esqueceram que o professor é um ser humano, que ele tem uma bagagem cultural preciosa e que essa bagagem vai garantir que o aluno fique na escola, não é só o caso de praticar situações cotidianas que deixem o aluno seguro para se comunicar sem precisar estudar gramática. Há algo além, que é o conhecimento de mundo, a cultura. O professor não é uma figura qualquer nem deve ser. Nem o aluno. Quando dois seres humanos estão juntos aprendendo alguma coisa, os dois ensinam, os dois aprendem, mas isso está ficando cada vez mais longe da realidade das escolas de inglês hoje, em 2007.

O ensino da língua inglesa está cada vez mais controlado e opressor. Há escolas que forçam o professor a repetir frases em inglês e a mesma frase em português, traduzindo logo depois, por exemplo: “Open your books”, “Abram seus livros”, isso é absurdo. Há escolas que pedem que você mude seu inglês para o aluno de básico, mas isso precisa ter um limite também. O aluno é privado de vivenciar situações estranhas, tudo é preparado para que ele entenda tudo, mas o mundo lá fora não é assim. Parte do aprendizado da língua estrangeira é por sua própria natureza inseguro, cheio de associações, suposições. As escolas teimam tanto que o professor precisa deixar os resquícios de uma idéia de ensino tradicional que não engloba a diversão, o cotidiano, a vida do aluno que esquecem de uma coisa: banir o desafio intelectual de um aluno é tratá-lo como incapaz.

Na minha primeira aula de inglês na Cultura Inglesa, eu não entendi noventa por cento do que a professora disse. E ela falava sem parar, rápido, e só em inglês. Era exatamente o oposto do que se pretende hoje. Claro que eu senti medo, vergonha, insegurança, mas eu levantava a mão e dizia a única frase que eu sabia “I didn’t uniderstand”. E ela repetia pausadamente para mim. Era desafiador. Era intrigante. Era horrível? Era dolorido, mas não me traumatizou. Eu me tornei uma professora de inglês depois, e isso deve significar alguma coisa. Muita gente desiste desses cursos de inglês de esquina porque eles não são humanos.

A parte mais estranha disso tudo é que eu devo muito à língua francesa. Porque se a literatura francesa me entediava horrivelmente, se os métodos de ensino de língua francesa na faculdade eram geralmente medonhos, e se a maior parte dos professores oprimia os alunos, saber francês me abriu portas que eu nunca imaginaria que poderia chegar a conhecer. Isso porque eu comecei a estudar francês com uma professora nativa muito culta, que estudava cultura indu, japonesa, chinesa, africana, oriental em geral. E há muitos livros sobre esses assuntos em francês.

O contato com a riqueza intelectual que essas aulas me ofereceram foi extraordinário e mudou a minha visão de mundo. Eu já gostava de astrologia, já simpatizava com o tarô, mas eu não tinha idéia do quanto de novidade a cultura e religião oriental trariam para a minha vida.

Essa foi a segunda guerra cultural. Enquanto eu me afogava em estudos lingüísticos, fascinada pela análise de discurso, pela semiótica, minhas aulas particulares de francês me ensinavam sobre o Universo, sobre os Deuses orientais, sobre valores como a compaixão, coisa bem rara no meio acadêmico, para dizer o mínimo.

Levaria muito tempo para explicar essa mudança, mas foi fundamental para o meu enriquecimento pessoal. Se a faculdade me trouxe versões da literatura francesa que eu detestei e um pensamento teórico demais, fossilizado, obrigações repetitivas, falta de imaginação e servidão intelectual, os meus contatos com pessoas que já amavam o francês e a cultura oriental – no caso da professora particular de francês – e a literatura inglesa – no caso de amigos intelectuais e professores de inglês -, me salvaram.

Eu só posso dizer que o aprendizado de uma língua, seja ela qual for, é muito mais do que o conhecimento da gramática ou de como pedir um prato num restaurante. É ter acesso a um tesouro que enriquece uma pessoa de formas que ela mesma nunca poderia prever. Por isso sou muito grata por ter enfrentado todos os desafios que o aprendizado do francês e do inglês trouxeram para a minha vida, especialmente por conta das pessoas que me mostraram leituras apaixonantes e valiosas para a minha vida.