MEMÓRIAS DE APRENDIZAGEM DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA

 

Vera Lúcia Menezes de Oliveira e PAIVA

 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/CNPq

 

Como professora, sinto-me “gramatiqueira” por não ter domínio suficiente da fala.

 

ABSTRACT

Language learning histories as related by teachers from public schools reveal that they had no chances to develop oral skills. Similar complaints are registered by different groups of learners. This text discusses the factors which contribute to perpetuate such perverse situation in the light of the complexity of language acquisition.

PALAVRAS-CHAVE: narrativas de aprendizagem; complexidade; formação de professor.

Introdução

 

            A resolução nº 2 do CNE de 19/02/2002 estabelece que a carga horária das licenciaturas é de 2800 horas, englobando 400 horas de prática; 400 horas de estágio curricular supervisionado; 1800 horas de aulas para os conteúdos curriculares de natureza científico-cultural; e 200 horas para outras formas de atividades acadêmico-científico-culturais. No entanto, a resolução é omissa no que diz respeito aos projetos pedagógicos que oferecem licenciaturas duplas, ou até triplas.

O grande problema enfrentado pelos cursos de licenciatura em língua estrangeira (LE) é o de que esses cursos estão, na maioria dos casos, atrelados às licenciaturas em língua portuguesa cujos conteúdos ocupam a maior parte da grade curricular. Como a legislação permite que as licenciaturas tenham a duração mínima de três anos, os empresários da educação alegam questões de mercado e de concorrência para empacotar a formação de professores em duas línguas, dentro de um período de três anos, sem nenhuma preocupação com o desenvolvimento da competência comunicativa do professor, para mencionar apenas uma das competências esperadas de um bom professor.

Após ter visitado muitos cursos em funcionamento e também ter avaliado muitas propostas de implantação de curso novos, posso afirmar, com segurança, que os espaços reservados nos projetos pedagógicos para a formação do professor de língua estrangeira bem como os conteúdos selecionados são insuficientes para uma boa formação do professor de inglês.

Minha experiência, semelhante a de outros avaliadores, é resumida em Dutra e Mello (2004, p.37) que ressaltam a cumplicidade dos cursos de Letras na perpetuação do problema.

 

Muitos desses cursos são ministrados em três anos e recebem alunos de escolas de ensino básico que também não investiram em um ensino de LE de qualidade. A maioria dos projetos pedagógicos que passam pela SESu, seja para autorização ou reconhecimento, devota ao ensino de inglês ou espanhol, cerca de 360 horas, ou no máximo 480 horas de ensino de língua estrangeira como acréscimo de 60 a 120 horas de literatura inglesa e norte-americana. A parte de formação de professor de língua estrangeira é praticamente inexistente e em muitos casos é de competência de departamentos de educação onde pedagogos não têm a formação específica na área de aquisição e ensino de LE. As aulas de literatura são dadas geralmente em português e as turmas chegam a ter 50, 70 e até 90 alunos, inviabilizando a oferta de um ambiente adequado à prática de idioma. Como resultado, o sistema educacional brasileiro coloca no mercado de trabalho professores despreparados e muitos recorrem aos cursos de especialização em busca de uma regraduação, o que naturalmente não encontram. Esse contexto reforça, dia a dia, o preconceito de que só se aprende língua estrangeira em cursos livres.

 

No que concerne à legislação atual sobre a formação de professor, a Resolução CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002 estabelece que:

 

Art. 4º Na concepção, no desenvolvimento e na abrangência dos cursos de formação é fundamental que se busque:

 

I – considerar o conjunto das competências necessárias à atuação profissional;

II – Adotar essas competências como norteadoras, tanto da proposta pedagógica, em especial do currículo e da avaliação, quanto da organização institucional e da gestão da escola de formação.

 

A pergunta chave aqui é, portanto, “Que competências são necessárias para a formação profissional e como elas devem ser desenvolvidas na proposta pedagógica?”.

Almeida Filho (2001, p. 20) advoga que um professor comunicativo deve possuir as seguintes competências:

 

Competência implícita (que se desenvolve em nós a partir das experiências de aprender língua(s) que vivemos), competência teórica (corpo de conhecimentos que podemos enunciar), competência aplicada (o ensino que podemos realizar orientado e explicado pela competência teórica que temos), competência lingüístico-comunicativa (a língua que se sabe e se pode usar) e a competência profissional (nosso reconhecimento do valor de ser professor de língua, nossa responsabilidade pelo avanço profissional próprio e dos outros e as ações correspondentes)

 

Concordo que todas essas competências são importantes, no entanto, não podemos desconhecer que sem a competência lingüístico-comunicativa o professor fica sem seu principal instrumento de trabalho, pois é essa a competência que ele tem a expectativa de adquirir para depois desenvolver em seus alunos e é essa mesma competência que os alunos esperam atingir, conforme dados de nosso corpus de narrativas do projeto AMFALE (Aprendendo com Memórias de Falantes e Aprendizes de Línguas Estrangeiras).

O artigo seguinte continua a explicitar o que é fundamental em um projeto de formação de professor. Vejamos:

 

Art. 5º O projeto pedagógico de cada curso, considerado o artigo anterior, levará em conta que:

I – a formação deverá garantir a constituição das competências objetivadas na educação básica;

II – o desenvolvimento das competências exige que a formação contemple diferentes âmbitos do conhecimento profissional do professor;

III – a seleção dos conteúdos das áreas de ensino da educação básica deve orientar-se por ir além daquilo que os professores irão ensinar nas diferentes etapas de escolaridade;

IV – os conteúdos a serem ensinados na escolaridade básica devem ser tratados de modo articulado com suas didáticas específicas

 

Que competências são objetivadas na educação básica e que conteúdos são ensinados aos nossos jovens? Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental sugerem que o foco prioritário deve ser a leitura, o que considero lastimável, mas nem isso, na prática, se concretiza A realidade exposta nas narrativas de alunos e professores, como veremos mais à frente, evidencia que os conteúdos continuam voltados para um ensino repetitivo e não contextualizado da gramática pela gramática e, às vezes, da tradução. Não se ensinam nem as habilidades orais e nem as escritas (leitura e produção de texto)

Os professores de língua inglesa parecem estar abandonados tanto em sua formação inicial quanto em sua atuação profissional nas diversas regiões do país. A esse respeito, diz Celani (2003, p.20),

 

Mesmo com a restauração das línguas estrangeiras em seu papel formador no currículo da escola fundamental, garantido agora pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a situação parece não ter melhorado, visto que as causas têm de ser buscadas em níveis mais profundos de formação inicial de professores de línguas na Universidade. Embora a situação de carência se caracterize em todos os tipos de escola, ela parece ser particularmente aguda na escola pública. O ensino de língua estrangeira, particularmente do inglês, encontra-se totalmente à deriva, com professores, pais e alunos muitas vezes se perguntando a mesma coisa. O que estamos fazendo aqui? Para que servirá esta tentativa frustrada de se ensinar/aprender outra língua?

           

Narrativas de aprendizagem: ouvindo a voz dos professores

 

As narrativas de aprendizagem utilizadas neste trabalho foram coletadas pelo projeto AMFALE que tem colaboradores nacionais e internacionais. Um dos colaboradores do projeto é Tim Murphey que utiliza as narrativas com o objetivo de dar exemplo aos alunos novatos e os ajudar a melhorar sua aprendizagem. Ele acredita, também, que os professores, ao lerem as histórias, podem aprender como ensinar de forma mais apropriada. Murphey (1999) afirma que:

 

A história de aprendizagem de cada pessoa é singularmente construída por eventos, desejos, decisões, estratégias, crenças, ações, e percepções individuais. A escrita de nossas histórias nos permite refletir sobre essas forças e nos torna conscientes de nossa parte na construção de nossa história. Essa consciência meta-cognitiva nos capacita a ter mais controle sobre o futuro de nossa aprendizagem. (minha tradução)

 

Nosso propósito é o de usar as narrativas como estimuladoras de reflexão sobre a formação de professores de LE. Minha esperança é a de que juntos possamos pensar em ações para interferir, positivamente, no futuro da formação de professores ao nos inteirarmos sobre os eventos, os desejos e as decepções de professores, na voz dos próprios narradores.

            Os dados aqui discutidos foram coletados em 61 narrativas de professores da rede pública, participantes do projeto EDUCONLE (Educação Continuada para professores de Línguas Estrangeiras), coordenado por Deise Prina e Heliana Mello na UFMG. O corpus se divide em dois conjuntos de dados: 24 narrativas coletadas em 2004 e 37 em 2005.

 

As narrativas

 

            Segundo Todorov (1979, p. 138),

 

[U]ma narrativa ideal começa por uma situação estável que uma força qualquer vem perturbar. Disso resulta um estado de desequilíbrio; pela ação de uma força dirigida em sentido inverso, o equilíbrio é restabelecido; o segundo equilíbrio é semelhante ao primeiro, mas os dois nunca são idênticos.

 

As narrativas de aprendizagem, como qualquer outra narrativa, trazem à tona os afetos e os ressentimentos associados, respectivamente, a momentos agradáveis e lembranças desagradáveis que agiram como forças perturbadoras que contribuíram para a desestabilização da situação estável.

Ao analisar os textos produzidos por esses professores, dividi os depoimentos em três grupos: em memórias negativas do passado, memórias positivas do passado e memórias recentes.

Nas memórias negativas, os professores registram como foi a sua aprendizagem no ensino básico. O que mais encontrei nos dados foi a decepção bem representada pelas narrativas (1), (2), (3) e (4).

 

(1)    Meu primeiro contato com a língua inglesa foi na 6ª série do ensino fundamental. Estava super ansiosa para aprender algo em inglês, e aprendi: aprendi gramática, tradução, algumas normas gramaticais, etc. Mas o que mais me interessava não foi bem trabalhado: a conversação (pronúncia, entonação) e trabalho com textos. Foi assim até o 3º ano de magistério.

 

(2)    (...) na escola fundamental, a única coisa que aprendi foi o ‘verbo to be’.

 

(3)    A aprendizagem deixou a desejar. Antes de começar a ter aulas de inglês, eu acreditava que se aprendia a falar inglês no ensino regular, mas, com o passar dos anos, percebi que isso não acontecia. Hoje sei que a culpa não era dos professores, mas eles também não tinham muito a oferecer.

 

(4)    Minha aprendizagem de língua estrangeira na escola regular pode ser considerada como superficial e fragmentada. Até a oitava série estudei em uma escola particular, o que não me livrou do despreparo do professor. As aulas giravam em torno de gramática, principalmente dos verbos. No ensino médio, já na escola pública, as aulas eram em cima da gramática. Havia muita troca de professores, mesmo durante o ano, o que não permitia um seqüenciamento e aprofundamento dos estudos

 

Queixas como essas se reproduzem ao longo do corpus. Os professores reclamam que a escola regular era fraca, que as aulas eram ministradas em português; que eram chatas e cansativas; que alguns professores não se relacionavam bem com a turma; que o conteúdo se restringia à gramática, ao vocabulário e verbo “to be” e que não havia conversação, “listening” ou preocupação com a pronúncia. Dizem ainda que não tiveram contato com material autêntico e uma professora afirmou: “Ficávamos sempre nas primeiras lições”. Mesmo quando se referem à universidade, alguns reclamam que as aulas eram em português e que não havia aula de conversação. Uma informante afirma “Não tive oportunidade de ter professores falantes do idioma em sala de aula” e outra lamenta:

 

(5)    Voltei a ter contato com a língua, na condição de aluna, quando optei por fazer o Curso de Letras (Port. / Inglês) na expectativa de aprender conversação, vocabulário, ter aulas em laboratórios de línguas, enfim, fazer com que eu me sentisse segura para me comunicar e entender a língua. No final do curso, vi que o que eu aprendi não acrescentou nada além do que eu já sabia.

 

Há, ainda, relatos de desinteresse pela aprendizagem da língua e por ser professor de inglês. Alguns foram obrigados a cursar licenciatura dupla por falta de opção.A baixa auto-estima também aparece nas narrativas. Vejam o depoimento registrado em (6):

 

(6)    Eu como aprendiz de língua inglesa tive muitas dificuldades. No ensino fundamental odiava as aulas. Não me saía bem em provas, trabalhos, etc.; achava muito difícil e muito chato, sempre me perguntava: “para que saber inglês se não sei nem o português?’

Até então terminei o ensino fundamental e fui para o 1º ano do 2º grau, também não gostei, tive um professor que dava prova oral, pergunta e resposta, tinha que responder rápido caso contrário perderia os pontos, no entanto me esforcei e decorei.

 

Como podemos perceber, a narradora acredita no preconceito imposto às classes menos privilegiadas de que elas não sabem português e não entendia o porquê de estar aprendendo uma língua estrangeira. Foi submetida a experiências de aprendizagem traumatizantes, mas acabou optando por ser professora de língua inglesa.

            A memória da experiência de aprender a língua inglesa como algo frustrante não é uma característica apenas desse grupo de professoras. No corpus de cerca de 300 narrativas do projeto AMFALE, coletadas até 2005, outros aprendizes relatam frustrações semelhantes. As histórias mudam quando os atores têm situação econômica mais privilegiada. A mesma frustração está registrado em uma das narrativas analisada por Telles (2004, p.70):

 

(7)    (...) a cada final de aula, meu entusiasmo era abatido pela displicência do conhecimento em língua inglesa que me era oferecido. Eu queria falar inglês, entender inglês, mas o que “aprendia” era uma lista de verbos e vocabulário. Algumas regras gramaticais que me permitiam construir algumas frases soltas.

 

            Lieff (2003, p. 109), também, registra um sentimento de frustração na fala da maioria de seus 33 informantes quanto ao ensino da fonologia do inglês; Diz ela; “Há um sentimento de frustração e, às vezes, de revolta quando professores referem-se “ao direito a um conhecimento que lhes foi negado” e dizem que, agora, têm que “correr atrás do prejuízo”“.

            Alunos de um curso de Letras, pesquisados por Barcelos et al. (2004) também se referem à ausência da competência comunicativa necessária para enfrentar o mercado de trabalho.

            O ensino baseado em métodos tradicionais que ignoram a produção de sentido não é privilégio do Brasil. Situação semelhante é retratada por Gu (2003) quando dá voz a um especialista britânico que, ao observar que o inglês, em alguns lugares da China, era ensinado através de memorização de vocabulário e leitura, afirmou que aquilo lhe trazia lembranças de suas aulas de Latim, pois o Inglês estava sendo ensinado como uma língua morta.

As memórias positivas giram em torno de momentos de experiência com as habilidades orais ou com a oportunidade de ver a língua em uso. Uma narradora relata: “Tive uma professora que estimulava a aprendizagem nas suas aulas em forma de jogos e provas orais; mas foi só um ano. No ano seguinte voltou o meu tormento. Foi assim até o final do 2º grau”.

São raras as narrativas com memórias positivas como as encontradas em (8), (9) e (10).

 

(8)    Meu primeiro contato com a língua inglesa foi na 5ª série do ensino fundamental, eu ficava vibrando para assistir as aulas e tinha muita expectativa de que iria falar inglês e contava para a minha família e amigos. Nos anos seguintes foi da mesma forma, sempre dedicada, ajudava os colegas e o que me era cobrado dava conta. Quando cursei Letras eu era uma boa aluna, muitas das minhas colegas desistiram do inglês porque não gostavam e eu continuava a vibrar com a matéria e queria sempre aprender mais. Eu não gostava de Português, mas estudava para passar de ano.

 

(9)    O meu contato com a primeira língua estrangeira, no caso o inglês, aconteceu na quinta série do ensino fundamental no Colégio Tiradentes da PMMG. Eu me lembro de ter gostado bastante da novidade: eu iria aprender a me comunicar num outro idioma! A professora, “Dona Fátima”, era jovem e simpática e nos cativou com seu jeito delicado. Realmente, estudar inglês a partir da quinta série, foi uma experiência muito boa para mim

 

(10)Comecei a estudar inglês antes de ter esta disciplina na escola regular. Estudei por 5 anos em um curso livre de inglês e desde o início ficava encantada com a maneira que me era apresentada a aprendizagem de uma segunda língua: através de experiências cotidianas e de uma forma natural.

 

Um momento marcante para duas informantes foi ter um professor que falava inglês e outra lembra que a professora levou um inglês na sala de aula. Outros mencionaram as aulas em laboratório de fonética, as aulas de listening, e a oportunidade de uso da língua em atividades de teatro, música e diálogos.

            Os professores que procuram o projeto EDUCONLE têm a expectativa de trabalhar com metodologia, mas é evidente o seu desejo por desenvolver a compreensão oral e a conversação. O mesmo acontece no projeto coordenado por Celani, como relata Ribeiro (2003, p 153) ao transcrever depoimentos de participantes do projeto que gostariam de ser fluentes, de ter desenvoltura oral.

            Quanto às memórias recentes, há um lamento de que os alunos de escola pública não sabem a importância do inglês na vida deles e menção aos sentimentos negativos que a disciplina e, por conseqüência o professor despertam nos aprendizes. Um professor chegou a afirmar “eles nos odeiam”. No entanto, há também relatos de professores que conseguiram reverter o ódio em amor e que se sentem vitoriosos por terem auxiliado seus alunos a gostarem do idioma. Outros demonstram muito fascínio pela língua e se empenham em transmitir esse sentimento:tento passar para os alunos esse encantamento e fazer ver a possibilidade do conhecimento e diferenças culturais”.

            O professor encontra pouco apoio das Instituições e do governo. Veja trecho da narrativa (11):

 

(11)Quanto a minha vida profissional como professora, tenho pouca experiência. Comecei a lecionar o inglês este ano e estou sentindo muitas dificuldades devido à falta de estrutura das escolas públicas, não nos oferecem livros didáticos, as salas são super lotadas, os alunos também não demonstram interesse em aprender a língua, enfim uma série de fatores que às vezes nos levam ao desânimo. Mas estou procurando aperfeiçoar-me, encontrar soluções para estes empecilhos, pois não devemos deixar vencer pelos obstáculos e sim superá-los.

 

Essa narrativa fornece o gancho para discutirmos a complexidade da aprendizagem de LE.

 

A aprendizagem de línguas como um sistema complexo

 

A narradora em (11) têm consciência da multiplicidade de fatores que compõem o sistema complexo da aprendizagem de línguas: o contexto educacional, o contexto econômico e as diferenças individuais de cada aprendiz. É importante perceber na fala da narradora em (11) a necessidade de encontrar soluções para problemas que fogem ao seu alcance – a situação econômica e a política educacional que sonega material didático para professores de línguas estrangeiras.

Nas demais narrativas, também encontramos referências a outros fatores que compõem a complexidade da aprendizagem de LE: o professor (seu grau de (in)competência, (ir)responsabilidade, simpatia, etc.); a abordagem e as habilidades privilegiadas; as crenças dos aprendizes; interesses e necessidades; relevância do conteúdo; e afiliação ao idioma.

 Processos biológicos, cognitivos, afetivos; sociais, culturais e históricos se inter-relacionam no processo de aprendizagem e se influenciam. O processo de aprendizagem passa por períodos de estabilidade e momentos de turbulência. Alterações em qualquer um de seus subsistemas poderão influenciar os outros elementos da rede. Após o caos, entendido como momento ótimo de aprendizagem, nova ordem se estabelece, mas nunca como um produto final acabado, estático, até porque a língua também é um processo em constante movimento.

A aprendizagem de uma LE é um processo que sofre mediações diversas, de pessoas e de artefatos culturais, e que ocorre em contextos diversificados e de forma desigual para cada indivíduo. Como cada ser humano é diferente do outro, os processos semióticos, as conexões efetuadas, serão também diferentes.

Uma característica, especialmente relevante, quando se trata de aprendizagem de LE na realidade brasileira, é a capacidade de adaptação a um contexto muito pouco favorável na maior parte do território nacional, seja pela ausência de professores bem preparados, seja pela ausência de oportunidades de contato com a LE.

            Em nossas narrativas é possível perceber que faltaram muitas das condições necessárias para movimentar o processo de aprendizagem. Faltaram professores bem preparados, input significativo, material didático, oportunidades de uso. A língua foi apresentada para a maioria dos narradores como algo fragmentado e desprovido de sentido.

 

Conclusão

 

Bruner (1997, p. 50-51), citando Burke (sem referência bibliográfica no texto) lembra que as histórias bem formadas são compostas de cinco elementos: ator, ação, meta, cenário, instrumento e um problema que consiste em um desequilíbrio em qualquer um dos elementos.

Na maioria de nossas histórias, temos um narrador, falando de um ator, ele mesmo quando aluno do ensino básico e do curso de graduação, na ação mal sucedida de aprender a língua inglesa, geralmente no cenário da escola publica no ensino básico e da faculdade particular na graduação. A meta é falar a língua, mas há um desequilíbrio no instrumento, pois ele se constitui de estruturas sintáticas descontextualizadas.

            Por que os professores contaram essas histórias e não outras? Certamente, não foi por falta de outras lembranças, mas porque estas foram as marcas que ficaram como impressões digitais e que conferiram a eles a identidade de professores que não alcançaram a competência comunicativa necessária para o exercício profissional.

Quando cada protagonista retoma o presente e se funde com o narrador, resta o lamento e alguns indícios que apontam para o futuro. Eles empreendem novas ações para tentar fechar a história, entre elas a inserção no projeto EDUCONLE. O desejo é “falar fluentemente”, como podemos ver na narrativa (12).

 

(12)Bem, como aprendiz de língua inglesa, eu fui sempre uma aluna aplicada, pois eu adorava inglês. Mas eu não me realizei totalmente, porque eu não consigo falar fluentemente a língua. Às vezes eu tento entender os filmes sem legenda e as músicas e eu tenho alguma frustração, pois eu já estudei bastante, estou sempre lendo livros novos e parece que eu não vou atingir o meu objetivo: falar fluentemente o inglês.

 

Escolhi essa narrativa para representar o desejo latente na maioria das histórias dos professores do projeto EDUCONLE. Muitos professores, em situação semelhante, procuram os cursos de especialização em língua inglesa. Esses cursos, que proliferam no nosso país, tratam geralmente da competência teórica e aplicada, pois possuem um forte foco em lingüística aplicada. No entanto, a maioria das pessoas que busca a pós-graduação lato sensu, está, na verdade, almejando adquirir sua competência comunicativa.

Os projetos de formação de professor que trabalham as competências teórica e aplicada, geralmente, investem pouco na competência lingüística e as aulas são, freqüentemente, ministradas em português. Duas exceções são os projetos coordenados por Antonieta Celani, em São Paulo, e por Deise Prina e Heliana Mello, em Belo Horizonte e já citados neste trabalho.

Em São Paulo, o projeto A Formação Contínua do Professor de Inglês: Um contexto para a reconstrução da Prática, coordenado por Celani, tem o apoio da Cultura Inglesa que “se encarrega do aprimoramento da formação lingüística dos professores participantes” (Celani, 2003, p.21) com aulas de inglês em que podem durar até seis semestres.

Em Belo Horizonte, o projeto EDUCONLE tem por objetivo “proporcionar experiências lingüísticas e metodológicas para a formação continuada de professores da rede pública de ensino” (DUTRA e MELLO, 2003, p.35-6). O projeto, além do módulo de metodologia e prática reflexiva, oferece módulos de ensino de línguas ministrados por bolsistas da graduação, orientados pelas professoras responsáveis pelo projeto e por mestrandos e doutorandos da pós-graduação.

Os livros voltados para a formação de professor, naturalmente, tomam como pressuposto que os professores já possuem a competência lingüístico-comunicativa. Esses livros, tanto os nacionais como os internacionais, trazem temas tais como teorias de ensino, teorias de aprendizagem, observação de sala de aula, prática reflexiva, supervisão e gerenciamento de sala de aula, auto-avaliação do professor, planejamento, técnicas, dinâmicas de grupo, metodologia, currículo, desenvolvimento de material, pesquisa em sala de aula, crenças de alunos e de professores, características de aprendizes, incluindo estilos e estratégias de aprendizagem, desenvolvimento de habilidades, correção de erros, interação na sala de aula, avaliação. Mas não adianta avançar nessa área sem a ferramenta principal que é a competência comunicativa.

            Há pouco material voltado para a aprendizagem autônoma da língua inglesa. Um deles é  Learning do Learn English de Ellis e Sinclair (1989) e outro é o Wordflo: your personal English Organizer das mesmas autoras, Ellis, Sinclair e Acklam (1996). Na UFMG, acabamos de editar “Práticas de ensino e aprendizagem de inglês com foco na autonomia” (PAIVA, 2005) com o objetivo de ajudar o professor e o licenciando a continuar seu processo de aprendizagem da língua de forma autônoma e, ao mesmo tempo, a refletir sobre os processos de ensino e aprendizagem que propiciem o uso da língua estrangeira de forma significativa.

Estamos tentando seguir o conselho de Pennycook (2001: p. 161) que afirma que a pesquisa na perspectiva da lingüística aplicada crítica deve “trabalhar com os interesses e desejos dos participantes, levar em consideração as questões de poder no contexto estudado; e ter objetivos transformadores”.

Nas narrativas dos professores do projeto AMFALE, encontramos repetidamente manifesto o desejo dos narradores de buscar fluência na língua que ensinam, pois, ao longo de suas histórias de aprendizes, foram submetidos ao ensino de uma língua como se morta fosse, com foco exclusivo na gramática e em exercícios que não proporcionavam a produção de sentido.

Em Paiva (2005, p.150-1) afirmo que:

 

Se, por um lado, podemos culpar o professor por não dar ao aprendiz um ensino de qualidade, por outro, não podemos deixar de ver ambos como vítimas das relações de poder. O professor mal formado é ele próprio vítima de currículos inadequados1, vítima de sua situação econômica, vítima de um contexto desfavorável que não lhe dá acesso a falantes ou a tecnologias que possam compensar essa ausência de contato com uma comunidade de prática em língua estrangeira. Sem o domínio de sua ferramenta básica, fica difícil a qualquer pessoa exercer sua profissão com competência.

 

As histórias vão se repetindo, pois, assim como a professora de nossa epígrafe, os professores que não têm a competência comunicativa acabam não tendo outra saída senão serem “gramatiqueiros”, mesmo sabendo que essa não é a melhor forma de se aprender uma língua, afinal foram eles mesmos vítimas desse mesmo tipo de ensino. Se não fizermos nada para alterar a história, não vamos ter nunca um ensino eficiente de línguas estrangeiras no Brasil.

As histórias desses professores ainda não estão completas e precisamos ajudá-los a sair da turbulência e estabelecer uma nova ordem. Apesar das condições adversas, esses 46 professores foram em busca de apoio de um programa de Educação Continuada. Essas narrativas, tão marcadas pela ausência de uma boa formação, nos levam a pensar em ações que possam interferir na história da formação de professor de língua inglesa em nosso país.

Acredito que as associações de professores precisam ter um papel mais político e tentar interferir, por exemplo, na política de criação e de avaliação de cursos de Letras. A primeira tarefa que temos pela frente é nos fazer ouvir no MEC, tanto na Secretaria de Ensino Superior, órgão responsável pela autorização de abertura de Cursos de Letras, quanto no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, responsável pelas avaliações das condições de oferta dos cursos em funcionamento, e no Conselho Nacional de Educação que é o órgão que delibera sobre a política de ensino educacional no país. Precisamos reivindicar que a aprovação e recredenciamento de cursos de Letras tenham projetos específicos para a formação do professor de língua estrangeira com a garantia de um número suficiente de horas para o desenvolvimento da competência comunicativa do professor, além das outras competências.

Devíamos seguir o exemplo de algumas áreas como o Direito e a Medicina e criar nosso conselho profissional de forma a ter nossa voz garantida na política de ensino da área.

Devemos exigir que o MEC e as secretarias estaduais de educação invistam em projetos de educação continuada do professor de língua inglesa e que forneçam material didático de qualidade aos alunos do ensino fundamental e médio.

Finalmente, devemos lutar pela implementação efetiva da Resolução CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002, principalmente no que diz respeito à interação entre a universidade e os professores em serviço. O § 2º do Art. 14. prevê “um sistema de oferta de formação continuada, que propicie oportunidade de retorno planejado e sistemático dos professores às agências formadoras”.

Se conseguirmos intervir na política educacional de forma a melhorar a qualidade dos cursos e se esses cursos tiverem projetos de estágio inovador que associem formação de professor em serviço e em processo de formação, estaremos dando um passo importante para mudar as histórias dos futuros aprendizes e professores de língua inglesa.

 

Notas

[1] As avaliações dos cursos de Letras (ver relatórios SESu e INEP) deixam evidentes que os currículos de formação de professor de língua estrangeira merecem pouca atenção por parte de quem os planeja. Minha experiência como avaliadora me diz também que há muita disputa de poder entre professores de língua materna e de estrangeira e que os primeiros, geralmente, saem vencedores.

 

Referências Bibliográficas

 

ABRAHÃO, M.H.V.(Org.). Prática de ensino de línguas estrangeiras: experiências e reflexões. Campinas: Pontes, 2004.

 

ALMEIDA FILHO, J.C.P. O ensino de línguas no Brasil de 1979. E agora? Revista Brasileira de Lingüística Aplicada. v.1, n.1. 15-29, 2001.

 

BARCELOS A. N.F.; BATISTA, F.S; ANDRADE, J.C. Ser professor de inglês: crenças. Expectativas e dificuldades dos alunos de letras. In: ABRAHÃO, M.H.V. Prática de ensino de língua estrangeira: experiências e reflexões Campinas: Pontes, 2004.

 

BRUNER, J. Atos de significação. Trad. Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

 

CELANI, A. A. Um programa de formação contínua. In: CELANI, A. A. (Org.). Professores e formadores em mudança. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. p.19-335.

 

DUTRA, D.P.; MELLO, H. A prática reflexiva na formação inicial e continuada de professores de Língua inglesa. In: ABRAHÃO, M.H.V.(Org.). Prática de ensino de línguas estrangeiras: experiências e reflexões. Campinas: Pontes, 2004.

 

DUTRA, D.P.; MELLO, H.; PAIVA, V.L.M.O.; JORGE, M.; MARRA, P.A.; RAVETTI, G. Projeto de Educação Continuada para Professores de Línguas Estrangeiras. Belo Horizonte; FALE/UFMG, 2002.

 

ELLIS, G.; SINCLAIR, B. Learning to learn English. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

 

ELLIS, G.; SINCLAIR, B.;ACKLAM, R. Wordflo: your personal English organizer. Harlow: Longman, 1997.

 

GU, Q. Bridging belief gaps in ELT teacher education in cross-cultural settings. IATEFL TTEd SIG Newsletter. Issue 2, July, 2003. Disponível em: http://www.developingteachers.com/articles_tchtraining/bridging1_qing.htm Acesso em 26 de abril de 2005.

 

LIEFF, C. D. O ensino da pronúncia do inglês numa abordagem reflexiva. In: CELANI, A. A. (Org.). Professores e formadores em mudança. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. p.107-17.

 

MURPHEY, T. ; Chen, J; Chen, L. Learners’ constructions of identities and imagined communities. In P. Benson & D. Nunan, (Eds.). Learners' Stories: Difference and Diversity in Language Learning. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 83-100

 

____________. Between the Keys, the Newsletter of the JALT Material Writers SIG 7 (2) 1999 pp. 8-11,14 . Disponível em: http://www2.dokkyo.ac.jp/%7Eesemi029/pages/LanguageLearningHistories. htm Acesso em 14 de abril de 2005. 

 

PAIVA, V.L.M.O. Autonomia e complexidade: uma análise de narrativas de aprendizagem. In: FREIRE, M.M; ABRAHÃO, M.H.V; BARCELOS, A.M.F (Orgs.). Lingüística Aplicada e Contemporaneidade.  Campinas e São Paulo: Pontes e ALAB, 2005. p.135-153

 

PENNYCOOK, A. Critical applied linguistics: a critical introduction. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum, 2001.

 

RIBEIRO, F.M. Investigando as representações que o professor de inglês da rede pública faz de si mesmo. In: In: CELANI, A. A. (Org.). Professores e formadores em mudança. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. p.149-58.

 

TELLES, J. Reflexão e identidade professional do professor de LE: que histórias contam os futuros professores? Revista Brasileira de Lingüística Aplicada. v.4, n.2. 57-83, 2004.

 

TODOROV, I. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979.