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Narrativas dos Pesquisadores - Magali Barçante Alvarenga

 

Narrativa de  Magali Barçante Alvarenga

 

Quando a Vera me falou/escreveu sobre o projeto de narrativas, imediatamente lembrei-me de uma professora. Seu nome eu não sei mais, mas  lembro-me da fascinação que sentia pelas aulas. Estava eu no Sul do Brasil, meu pai transferido e eu estudando inglês pela primeira vez. Era um colégio de freiras, Santa Rosa. Lembro-me da professora, um pouco gorda, sentada, nos ensinando uma música "When I was a baby, a baby, a baby, when I was a baby, a baby was I, and this way, and that way, and this way, and that way, when I was a baby, a baby was I". A letra continuava, passando por alguns estágios de nosso desenvolvimento "...when I was a school girl..." e ainda havia as perguntas "What is this? What is that?"

Cheguei em casa, maravilhada, estava com 11 anos. O frio de Lages nos obrigava a armazenar lenha, o que amávamos, eu e meus irmãos; éramos, na época, cinco meninos, eu e minha irmã mais nova. Sentei-me na área que saía da cozinha; lembro-me de olhar o lugar onde a lenha estava guardada, mas não para o frio àquela época, para o fogão à lenha. Olhava para o meu caderno, colocado num pequeno apoio na minha frente, com os exercícios e a música. É como um flash. Lembro-me da minha alegria ao dizer para mamãe que eu estava aprendendo inglês, e repetia a música, e copiava, sentada, várias vezes, as perguntas What´s is this? That? E respondia, maravilhada.

Sempre tiver fascínio por códigos. Não leia isso o leitor estudado da área da linguagem como um não saber de uma professora, não analise, leia apenas... os códigos sempre me fascinaram. E ali estava um que queria compartilhar. "Mãe, sabe o que é isso? Aquilo? Olha o que eu aprendi!" Quanta motivação, que mundo mágico.

Sempre fui uma boa aluna de inglês, em qualquer escola; sentia-me entendida no assunto, gostava de decorar, de estudar, de decorar, tal qual eu fazia nas aulas de audição, no Rio de Janeiro, onde aprendi a declamar. Na verdade, eu declamava inglês. Depois foi francês, só que um pouco diferente, com diálogos. "Allo, c´est Philippe Ledoux? Oui, c´est moi ..." e assim continuava, decorando, mas diálogos. Isso foi em São Paulo.

Eu sabia que o -s final de francês não era pronunciado. A professora pedia voluntários para irem ao quadro e lá ia eu, para o ditado ou para escrever a palavra que faltava, plural sem -s falado. Isso era fascinante, para mim era como entender algo misterioso, que nem todos sabiam, era um código de acertos e erros.

Nunca me incomodei com as correções dos professores, e me aventurava. No colégio de freiras Nossa senhora da Misericórdia, no Rio, perguntava minha professora da sétima série "Quem sabe como se diz cachorrinho em inglês?" período no qual eu decorava e usava diálogos "I walk into the room" - até hoje tenho simpatia pelo into, ele era diferente, específico.  "I close the door". Mostrava eu, então, os movimentos para os amigos da sala, e repetia as frases, e queria que eles aprendessem. Nessa aula do cachorrinho, fizemos exercícios com o "do" e com o "does". Disse eu, fazendo graça doguinho! Todos riram e a professora também.

Quando tinha a oportunidade de conhecer alguém que falasse outra língua, lá ia eu, pronta para ser intérprete. Lembro-me de uma amiga de mamãe que falava espanhol. Fomos a uma mercearia - isso foi em São Paulo  - e eu conversava com ela e com o vendedor e fazia a vez de intérprete e todos diziam que eu conseguia entender, como? Hoje, adulta, quando volto àquela cena, sei porque entendia. E mamãe me elogiava porque ela sempre nos elogiava. Isso me motivava e eu gostava cada vez mais de inglês e de outras línguas.
Na adolescência, em Campinas, conhecemos uma família de Montana, e ficamos amigos. A mãe estava grávida e teve seu terceiro filhinho no Brasil. Os outros dois filhos ficaram em minha casa, e eu conversava com eles - quanto erro na pronúncia, me lembro - às vezes, as crianças nada entendiam. Pudera! Tinha eu 16 anos.

E aí eu continuava, queria fazer um curso mas não dava para pagar. Aprendia na escola; cada insumo - na época eu não sabia o que era insumo- era por mim transformado em oportunidade de aprender: expandia as frases, as negava, mudava uma palavra, nomeava as coisas, enfim fazia jogos mentais  com a língua.

Sempre tive ótimos professores de inglês e de francês. Eu os achava ótimos porque eu tinha que estudar muito para saber, era uma cobrança grande. Em Campinas, uma professora de francês da escola onde estudei recebeu, há pouco tempo, uma homenagem de ex alunos ao colocarem o seu nome em um restaurante. Ela, bem senhora hoje, foi entrevistada por um jornal. Foi muito emocionante!

Quando eu estava no terceiro colegial, em Campinas, na escola estadual Culto à Ciência, pensava que não queria nunca deixar a escola, local que sempre me agradou, onde me senti a vida toda incentivada. Conversando com minha professora de inglês, Dona Terezinha, de quem tanto gostava, disse-lhe que não queria sair daquele ambiente, ao que ela me disse: "Seja professora, assim você sempre ficará na escola." Lembro-me dessa conversa tão perfeitamente que consigo sentir o cheiro de perfume que ela usava e consigo ver suas unhas longas e vermelhas, como as de minha mãe.

Não sei se foi naquele momento que decidi ser professora, mas a obviedade da conversa me fez pensar!!!

Nessa escola, onde fiz metade do primeiro colegial e o segundo e o terceiro anos inteiros, tive um professor de inglês que fazia chamada oral de verbos. Lembro-me que foi em uma de suas aulas que aprendi o passado de "to speak", achei legal "spoke".

Na universidade, com o curso de Lingüística, tive grandes oportunidades de aprender mais. Na Unicamp, alguns professores, inclusive o de História, falavam muito pouco português, e tínhamos que acompanhar as aulas. Lembro-me do professor de História, casado com uma moça brasileira, que pedia ajuda na sala de aula para a leitura de alguns trechos, em voz alta, em português, e lá ia eu, toda feliz. Esse professor nos convidou para uma festa em sua casa. Foi quase a turma toda e alunos de outros cursos da Unicamp. Tudo era motivo para eu aprender. Tudo se tornava insumo. Tive e tenho excelentes professores de Lingüística e de Línguas - inglês, francês, kamaiurá, alemão.

Nessa época, aprendi que podia chamar uma amiga, em francês, de "mon amie". Lembro-me de estar escrevendo em sala de aula um texto em francês, e tive dúvida quanto a "ma amie" porque pensava que nunca havido ouvido a professora falar  "ma amie", nem havido ouvido em letras de música, e também porque achava que não soava bem. Era um feeling.

As aulas de francês na Unicamp eram uma delícia. Tive duas professoras. A que dava aula de "oralidade" - áudio-visual - estava grávida, era o começo do curso, e havia alunos de todos os cursos lá. Ela usava slide e decorávamos as falas, todas encenadas na França. Eu gostava.

Matriculei-me novamente em francês e a  professora, antes de iniciar o curso, chamou os alunos, nos entregou revistas francesas e perguntou o que entendíamos, como fazíamos para entender os textos, tal e tal. Respondemos às perguntas, e ela nos disse que daria aula com base em leituras de textos, e perguntou nossa opinião. Aceitamos. As aulas eram muito boas. A professora sentava-se bem perto da gente, distribuía textos e nos orientava na leitura. Ela também ficou grávida e nós a tratávamos com muito carinho. Hoje, quando a vejo na Unicamp, andando para lá e para cá, sinto vontade de me aproximar e de conversar com ela sobre a importância que ela teve na minha aprendizagem, e depois quando me tornei mãe. Conversávamos sobre a gravidez e ela falava dos desejos de comer bomba de chocolate e do amor grande pelo bebê. Em uma de suas aulas, houve um texto inesquecível, que tratava de uma experiência em uma escola francesa. Aos professores de tal escola foi dito que determinada turma de alunos tinha grande dificuldade de aprender e que uma outra não. Queria-se relacionar a aprendizagem à expectativa que os professores têm de seus alunos. E lembro-me que o resultado da experiência foi entristecedor.  O que havia no texto, para saber,  nos motivava  a ler.

Quando penso em meus professores de línguas, ou em qualquer outro, vem um ponto em comum entre eles, entre aqueles memoráveis - a paixão pelo que faziam, o respeito pelos alunos e a leveza das aulas. "Apesar" - no bom sentido - de serem extremamente exigentes, havia um convite para as aulas. Havia coisa para ser feita, texto para ser entendido, diálogo e lista de verbos para serem decorados, cópia para ser feita. Não sei se eles pensavam em suas maneiras de ensinar, mas sei que tinham um compromisso conosco e com eles que saltava aos olhos. Além do mais, eu amava aquelas aulas, queria penetrar naquele mundo, conhecer aquelas culturas, e conseguia, do meu modo.

Muita aula de música na Unicamp - uma linda do Steve Wonder - Isn´t she lovely - e em francês - Aline -.

Tive professores de inglês que pediam para elaborarmos propaganda em inglês e apresentarmos para a classe, era vibrante. Na verdade, eu estudava muito. E nessa época, decidi ser professora de inglês - estava no segundo ano da faculdade - e me inscrevi em um curso de idiomas em Campinas para o teste. A aula era sobre verbos anômalos. Estudei tanto, mas tanto ... e fui aprovada. Tinha em mãos uma oportunidade única de aprender mais, porque ao preparar minhas aulas, e eu as queria bem preparadas, eu aprendia. Houve um treinamento antes de assumir as aulas, e lá aprendi a pronunciar melhor. Como vibrava! As aulas eram de gramática e tradução. Havia lista de vocabulário para ser decorada, frases para serem perguntadas e negadas. Tempos verbais para serem alterados, expressões para serem decoradas. E todos falávamos alto, em coro. A coordenadora nos dizia que queria ouvir as aulas da sala dela. Eu era a mais nova do grupo de alunos. Todos eram adultos e trabalhavam fora. Lembro-me de um aluno me perguntar como era Eu existo, em inglês, e eu não sabia, mas sabia I am!! Um colega me deu uma dica. Ouça música, disse-me ele. E assim foi, ouvi mais música ainda do que as que ouvia nas aulas de inglês na universidade. Era difícil transpor o conhecimento gramatical explicitado que eu tinha para situações reais imprevistas. Aquelas que eu podia organizar antes eram mais fáceis, mas não eram fáceis. Sentia-me despreparada para conversar de verdade. Até que escrevia bem. E completava lacunas.

Fui ao primeiro congresso de minha vida, no Rio de Janeiro. Participei de um mini-curso de inglês para crianças com o método (!) Come and Play, Filipovic.

O meu medo era nos intervalos. Já pensou se alguém viesse me cumprimentar em inglês? O que diria? E escapava das pessoas. Minha cunhada sabia falar bem, havia estudada numa boa escola de idiomas no Rio, e eu me sentia mal. Mas gostei do congresso. Como eu era professora sem saber me comunicar?? Isso me incomodava e pensava. Há lugares nos quais eu me sinto bem interagindo em inglês - com meus alunos - e em outros eu não consigo me expressar e tenho vergonha disso. Por quê? Ah, as aulas estavam prontas, lembra do imprevisto? Ele não acontecia, ou acontecia muito raramente. Era isso, tudo planejado, com script - pronto.

Nessa época, decidi fazer Letras e fiz. Cursei licenciatura dupla na Associação Educacional Veiga de Almeida, no Rio. Amei. Tive bons professores e estudei inglês mais ainda. Queria falar. Os professores pediam speech de short stories. Eu ensaiava, treinava, caprichava, e ia bem. Mas ainda havia as aulas fortes de gramática. As aulas de literatura eram em inglês. Bingo! Como aprendi. Ouvia a professora atentamente e estudava muito. Ficava em meu quarto estudando, tentando memorizar trechos com certa fluência e espontaneidade. Queria sentir que a fala era minha. Tinha uma amiga, Anailíria, que fazia curso na Cultura Inglesa e era fluente. Mandava-me bilhete durante as aulas e eu aprendia com ela "Would you be an angel as to lend me a pen?" escreveu. 

Nessa época, comecei a trabalhar no Yázigi do Rio. Participei de um treinamento. As aulas eram aúdio-visuais, havia o Zip, o Mr. Pep. Lembro-me do primeiro dia do treinamento "Coke or guaraná? Coke, please". Que legal. Parecia mais verdadeiro. Podia usar, nas aulas,  variantes formais e informais. Depois de um tempo, o Yázigi nos apresentou a abordagem comunicativa. Iniciamos com leitura. Havia muito treinamento, mas muito mesmo. Havia textos teóricos para discutirmos, aulas demonstrativas nas quais nós fazíamos o papel do aluno. Perguntávamos: Mas e se o aluno tiver uma profissão desconhecida por nós? Sugestão: Olhem as matrículas antes.

Mais trabalho! Menos conforto! Mais desafio! Mais aprendizagem para nós e para os alunos.  Acho que foi nessa época que descobri que língua não é código, que não bastava saber as regras como eu sabia, que havia algo mais. Na verdade, eu já desconfiava, mas não conseguia articular.

Eu ensinava e aprendia.

Continuei indo a congressos, dando aulas, fiz mestrado e continuei com francês, na UFRJ, com minha amiga Tiziana. Nessa época, eu, Yara e Heloísa fizemos uma pesquisa numa escola bilíngüe português-francês. Foi importante para mim ver Yara, fluente em francês, se comunicar com as pessoas, sem inibição, confiante.

E nesse continuar dos anos, tenho estudado sempre. Fiz viagem para os Estados Unidos e para a Europa. Foram experiências maravilhosas. Pude conversar, ler, ouvir, confirmar, aprender, enfim, interagir. Na Inglaterra, quando de um levantamento bibliográfico para a minha tese de doutorado, em Lancaster, a experiência foi mais vibrante e duradoura. Fiquei no campus e passava o dia estudando na biblioteca, aprendendo a tirar minhas próprias cópias, a comprar passagem, decidir coisas de verdade, com hora e preço de verdade. Na lavanderia do campus era uma delícia conversar com pessoas de outros países; aguardávamos a roupa ser lavada e conversávamos. Foi esclarecedor, inesquecível. Falar com pessoas de países e línguas tão diferentes do meu e não ter problema; vivi, senti que a pronúncia, na verdade, o sotaque de cada um não alterava as nossas intenções comunicativas. Pensava sempre nos meus alunos, no que poderia aprender com aquelas situações. Construíamos o tempo todo as nossas intenções. Senti que uma coisa era ouvir um exercício de listening e outra era o pra valer, aqui e agora - refiro-me também aos exercícios feitos para destacar diferentes sotaques. Pensei no laboratório de línguas ... pensei em como transportar toda aquela vida para a sala de aula ...

Aprendendo aqui e ali, lendo muito, asssitindo a vídeos e repetindo cenas que precisam ser melhor aprendidas, quase sempre com papel e caneta na mão, vou buscando melhorar a minha competência linqüístico-comunicativa. Ao preparar temas para as aulas de inglês aprendo mais e mais, o que, para mim, é motivador e apaixonante.

Que narrativa longa!! E olha que não contei tudo. Para terminar, sem nunca terminar, escreverei brevemente sobre a minha experiência aprendendo alemão. Minha professora chama-se Luisa, ela é brasileira e seu pai alemão. Aprendeu a língua desde criança e já esteve na Alemanha. Isso só para uma breve introdução.  Pois bem, decidi aprender uma outra língua estrangeira por alguns motivos. Pensei em reviver o processo inicial de aprendizagem de uma nova língua e também porque eu gosto de estudar línguas e culturas estrangeiras. Como eu já disse, sempre gostei. Tenho sobrinhas, irmã e cunhado que falam alemão, ou seja, teria com quem interagir de verdade. E isso é motivador.

A vontade e necessidade de reviver o processo inicial de aprender línguas ocorreu quando participei de um curso para alfabetizadores. Na verdade, eu havia organizado um curso para professores alfabetizadores da cidade onde moro e decidi ficar. Convidei a professora Cláudia Riolfi para ministrar o curso. E lá, aprendi  que esquecemos como o processo de aprendizagem ocorre. Nessa mesma época, li um livro que discutia isso. Rubem Alves, talvez.  Tudo se encaixava, fazia sentido.

Aprender alemão tem sido interessante, mas só poderei compartilhar assim que terminar de escrever. Deixo esta minha narrativa por enquanto.